sábado, 18 de setembro de 2010

Poema sobre a terra triste, chorar cerzido no choro

imagem: Joseph Beuys
(Sob o mote: A Terra, partilho convosco este meu poema recentemente publicado no n.º 12 de Saudade - Revista de Poesia, edição especial que contou, entre outros, com a colaboração dos Poetas:Amadeu Baptista, Ana Luísa Amaral, António José Queirós, António Salvado, Armando Silva Carvalho, Daniel Jonas, Fernando Echevarría, Fernando Guimarães, Graça Pires, João Rui de Sousa, Jorge Reis-Sá, Luís Quintais, Maria João Reynaud, Maria Teresa Horta, Nuno Júdice, Pedro Sena-Lino, Rosa Alice Branco, Vasco Graça Moura, Yvette K. Centeno)________________________
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na memória sobram os sulcos
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das ilhas de cinza órfãs de esperança
dos barcos ceifados na rotina do medo
das fomes no lugar das bocas
dos cantos enforcados no ocaso das espadas
das vozes inclinadas para o vento obeso dos obuses
das crianças coaguladas vertendo tristeza
rosto a rosto como eczemas da escuridão.
que nome dar aos girassóis endurecidos
se tão seco e sujo é o rumor da terra esquecida
dos dias limpos com mansas monções de luz?
escuto a terra
que ruge por entre rasgados templos
vejo-a
igual a um animal com minucioso cheiro de morte
mordendo o sitiado sangue entre crimes e feridas.
..............................................................................
não acendem as madrugadas as orquídeas do amor
tampouco as descomedidas águas da humanidade
choro que seca pelo nosso não chorar.
que arma amante do fogo poderá achar
a aragem verde dos caminhos e a trânsfuga do canto?
que mão para esquiar a neve negra das escoriações
e soerguida encontrar a nudez das estevas por semear?
cega é a lâmpada da memória
...........................................................
sua estatura lavrada pela mágoa esfriada
edema a edema como sub-reptícias ruínas
.............................................................
em silêncio sangrando-nos candeias e chuvas
em noite de manhã nunca chegada
denuncia-nos
o duro deserto da terra
os sonhos traídos, substituídos
pelo vício desertor.
luís filipe pereira


quinta-feira, 17 de junho de 2010

E É DE NOVO VERÃO NA VARANDA DO VERBO

(Imagem: A. Tàpies)
post-scriptum_ dedico, in memoriam,
este poema a José Saramago:
"o sentido não é capaz de permanecer quieto,
fervilha de sentidos segundos, terceiros e quartos,
de direcções irradiantes que se vão dividindo e
subdividindo em ramos e ramilhos,
até se perderem de vista"
(in Todos os Nomes)
E sob a sombra das imagens
Entre espuma negra
Adejam
Como nomes nus
Em estrofe lentíssima
Os calcanhares
E emplumam-se
Cheios de bocas
De barcos
De bosques
Rescendendo
Bravios
Com aves
Concêntricas
Entrelaçadas
E desejo-te
Desde o sanguíneo sargaço
A desenhar-me a pele
Com bátegas de búzios
Com limos de lume
Erguendo-se
Erosivos
Como um tráfego de feridas
Que fugisse do tempo
E o leme da pele
É uma linha
_____________
De linguagem
A parecer um mar
Que ao passar pela respiração
Se rasgasse
Manso
Violentamente
Só de repetir a matéria
Do grito mais rente
Na manhã repentina
Como se em seu ressoar
Encontrasse o mundo
O espaço duma estrela
Coada em verso que escrevesse
A escalada duma voz
Noutra voz
E espécie de gravitação
Entre as roucas rosas
Sempre sós
Em vermelha radiação
Ou estelar gramática
Esvaziada de pedras
De palavras
Ou este tremor de desejar-te
A talhar-me os dedos
A debater os cegos mastros
Entre a espuma
Memoriando-os
Sobre os passos
E é de novo verão
Porque mais nua a noite
Dos nomes
E devagar
Um rumor em resposta
Doridamente
Desde os calcanhares
À luz sôfrega
Que vem da sede
E suponho ser solidão
Da carne intocada
Da consciência inerente
A perder o pé
No caminho
luís filipe pereira

quarta-feira, 28 de abril de 2010

DAQUI EM DIANTE

(Imagem: Escultura de Baltazar Torres, Wave/2009)


para Fernanda Apolinário





É submersa em meu sangue

que mora a memória

dum mundo


na sua força de epigrama


na sua fala de esporângio


dum mundo


à beira da boca


como angular


asa por abrir


É rente ao remo


que se afunda


qual onda sob os ombros


da medida das manhãs


o ritmo das dispersas


varandas de sal


como a verdade espessa



em eólicos dedos



É na florida fronte


em padrão coeso

qual cálamo rendado de cais


que nos confins de pedras


de pássaros


afora de todo o espaço


se ergue o vento


como efémera estaca


do sonho


sem medida sacudido


quase veia flectida


sobre os filetes do verão


quase queda


quase dança

dum mundo nu de mundo


já dobra de nuvem

de nome

na janela


a rebrilhar


ribeiras vermelhas

brancas


no estanho desolado

baço

exogenamente riscado


do esquecimento.



luís filipe pereira

segunda-feira, 22 de março de 2010

O POEMA COMO TRAÇO


(Imagem: Paulo Nozolino)





na luz
da tua luz
como espuma
esconsa
se requebra
o sucessivo.


horizonte de hastes
de barro de asfalto
torce-se o tempo
à transparência
do inerme traço
___________
a lume
irradiando
da lâmpada
no seu langor
de lâmpada
.

ouço-te
vez primeira
no meigo metal
vesgo e gasto
das palavras
esplendidas
à margem
da gravidade
de golpes
de genomas
de mel.

uma treva
atrás
sabia-me
vapor
vertido
agora
na sombra
da sombra
cometa
caindo
sequiosa
vertigem
de saquear
das esquinas
o sumo
das estradas
a sabedoria.

vejo-te
dançando
pássaro
estival
espelho
deslumbrado
entre
pálpebras.

à volta
dos estilhaços
com geometria
vaga
esboço
vesperal
a cidade
gangrena irradiada
istmo
de vento garroteado
eterno êmbolo
do verso.

dou-te
os espaldares
dos dedos
e deixo-te
seguir viagem
intérminos
instantes
pelo canto
pétreo
ângulo de árvore
anoitecendo-nos.

uma treva
adiante
açude esclarecido
eis-me
címbalo
a monte
cravado
na noite
sob luas
de luas
cujas ancas
de sal
segam
caminhos
.

luís filipe pereira



domingo, 28 de fevereiro de 2010

CADEIRA INSULAR

(imagem: José Pedro Croft)


Dedico este poema à Bri e ao reflorescer da Madeira
É de água este silêncio
(se pudesse rasurava a água)
Escuta-o mudo o meu sangue
Frente às flores submersas
Entre pedras rodando dentro
Das corolas doridas dos ossos
No vão do muro
O ombro das vésperas
De veias.
Onde existe o olor da vida
Enfim lavrado o litoral
Do espelho?
[O rumor iniciou-se nas rótulas
Inclinei-me inteiro depois
Da cadeira ao crânio
Na direcção distante
Da fragílima fábula
Duma encefálica ribeira
(se pudesse rasurava as ribeiras todas)
Sonora soçobrou
Qual haurido hemisfério
A minha alma
É com silêncio e sangue
Ardendo ambos
Que olvido a voz da chuva
(se pudesse rasurava a chuva)
A obcecante carne a oxidar-me
Sobre os joelhos
Após o branco
Eu uma bramida barca
À boca dos mil muros erodidos
(ao rés da vacilação da água rasurada)
o espelho estilhaçado]
A cadeira deixada para trás
Sentar-se-á nela o lugar
Do leitor?
A ideia é fazê-lo aliar-se
À outra vertente do muro
A que começa no chão
Mutilado de alma
Após as cegas chagas
As que ardem ainda
na cadeira
luís filipe pereira

domingo, 17 de janeiro de 2010

Viajante de verão dentro da VIAGEM DE INVERNO/Schubert

poema viandante que dedico ao momento magnífico que ontem, no CCB, vivi pela voz de Rufus Müller, pelas mãos de Maria João Pires, pela música de Schubert, pelos versos de Wilhelm Müller de Winterreise (Viagem de Inverno)
Gute Nacht
Fremd bin ich eingezogen,
Frem zieh' ich wieder aus.
Der Mai war mir gewogen
Mit manchem BlumenstrauB.
_____________________
Boa-Noite
Estrangeiro, cheguei.
E estrangeiro parto.
Maio acolheu-me favorável
Com muitos Ramos de flores
(Wilhelm Müller)
Lá fora, o verão fustiga vagamente
os seus frutos.
Flutua a planície sede fora
num ondulado frio,
a arder.
Ouço o refulgir espesso do mar
de milho esquecido nas eiras.
Pouso a cabeça sobre o som,
atiço a sombra do sonho.
Com o vento -
este segredo de sede a vogar
nas minhas mãos -
vagueio pela casa.
Sento-me sobre os calcanhares
dos vultos, entrelaço-os no canto.
Ao fundo, fitam-me, vagarosos,
os degraus pensativos dando a ver
a porta.
Mais ao fundo, sob a secura
dum girassol de gelo e fogo,
escuta-me o eco, imóvel, do poço.
Até às entranhas entardeço.
Escrevo na escada estival
os teus passos. deixo-lhes,
no mais escuso degrau uma urze
e esta dedicatória que desponta:
lê lentamente a subida, alonga-lhe
o som. desci à cave quebrada onde
o vento é quase compacto, quase
latido de lume. desci às camadas
mais frias e fundas das calmas
variações da casa.
Desço à cave.
Estou no centro, na traqueia
da treva lenta.
Teias entrançadas, de brisas de aranhas
de bocas, espalham o espaço em torno.
Sinto uma tranquilidade saturada,
o ressequido em redor, sem nome.
Escorre-me o pensamento,
lança e lâmina,
pelos pilares, pelo que sobra das raízes
submersas no esguio meio-dia
dos escombros.
Cá dentro, deixo uma lágrima
morrer-me.
Nos dedos tão audível é o marulho
duro da vida, do vento: altissonante
abandono.
Nenhuma lágrima.
Nenhum passo teu,
porque nenhuma estalactite
a cair-me nos pés,
porque frio fruto nenhum
a anunciar-me que chegaste.
luís filipe pereira

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

PUBLICAÇÃO DE MEU CONTO "A CIDADE" NA REVISTA UMBIGO/DEZEMBRO 2009


(Com todos os visitantes e intertextuantes deste (vosso) espaço, partilho um breve trecho do meu conto "A Cidade" (ilustrado - brilhantemente, na Revista Umbigo por Colin Ginks - em jeito de repto para que desejem lê-lo na íntegra através da aquisição da Revista já disponível)
" Declinamos a marcha sem rumo e surpreendemos o feliz sossego; estamos juntos, matéria urbana de corpos e silêncios, fátuas fornicações sob a verde sombra, impudicamente.
Pelo menos os troncos são sólidos e, com paciente fúria fálica, erguem-se até ao azul, tão real, tão extenso: omoplatas comburentes no petróleo obsceno das tardes.
Olhando o azul cabisbaixo, gasto e irrefutável, refractado nos teus olhos que alimentam, como treva tenra de frutos, a minha viagem dentro da nossa viagem, sinto um ponteiro de afecto: sou capaz de responder à tua pergunta em suspenso, e que era, tão-somente, a meta do som além da surdez.
Sim. há uma luz esperando-nos após a madeixa de pólvora.................... dos passeios: há um apeadeiro levantando-nos como estacas de verão em que as nossas bocas fiquem à sombra e
âncoras soterradas para partirmos, para seguirmos juntos no estibordo do grito, no focinho da alvorada que, torneada a fome, nos abrirá o clarão das janelas de um canil fraterno: o sabor marginal de uma casa humana."
luís filipe pereira