helena almeida
- talvez uma boca. o casebre cansado de uma boca devoluta. a insânia de um grito espumejando a sua indivisa sede. talvez a obscena mendicância nas esquinas roídas das ruas: uma lábil sanguinária para aguarelar um abrigo de lua na alvorada da noite?
na parede, um quadro: ramos curvilíneos derredor de uma fresta de mar, talvez também o borrão de um pássaro, ou talvez uma redonda penugem de lua aguada. os ramos melancolizados, como que teias frondejantes de tresmalhação.dentro dos troncos há igualmente um mar: seu viúvo desvario de desperdícios, seu comestível sargaço, sua vazão. possessos de esquecidos protestos, sem palavras nem cor, há uma parede, há um quadro, há um mar. aos olhos, espiados pelo quadro, responde o mar:
- entretanto há o mar.
entre tanto e tão pouco, os ramos insinuam-lhe uma duna compacta, crescendo para dentro dos veios da folhagem a parecer um arbusto. os olhos fitam a impertinente cinza, os lenhos sifilíticos no lugar de frutos. do quadro ausentes, respondem os frutos:
- há sempre outra coisa angulada a escapar aos anzóis do esperado. o lugar interior da expectativa é sinuoso, abandona nas mazelas de cada esquina os morosos intermediários.
noutro quadro, derredor do cortinado descendo o estuque, encavalgam-se postigos de desgarramento: fiascos industriais a silenciar o cavo chilro do esquizóptero pássaro, do outro quadro, o terceiro, à mão direita do cortinado: chifres antropófagos desmedindo-se dos prédios: varandas com vassalos crisântemos: varejeiras e taipais: cimento cal areia e saibro. eis a janela até ao limiar do grito soterrado nos olhos que percorrem telhados e a lua de esguelha.
súbito um avião a ressumar estrias de espaço, a furar o verniz das nuvens e logo a acetona do esquecimento a macerar os olhos com a lâmina do tempo.um compasso de espera. um compasso de queda no cavo entretanto de um mar.
talvez uma lâmpada a romper do asfalto. talvez um miradouro também.avessos à domesticidade, os olhos precipitam-se. liquefazem-se. intumescem. precipitam-se, ainda só na plataforma daqueda.os postigos permanecem presos às ruas. as trelas atam as rotundas umas às outras. os tejadilhos também idênticos. outros vidros igualmente pegados aos caixilhos com massa de arenito, com óleo de linhaça. vielas e becos nos hiatos doutras vielas e becos. a mesma lua:impenitente. talvez olhos parecidos, também inspeccionados por paredes e quadros, a sangrarem nas águas-furtadas das memórias, a esperarem um tempo tornado breve. iguais beijos no engate infeccioso sob as nuas árvores. encapuzados sigilosos. meias de licra preta no lugar dos rostos. outras luas assimétricas no pardo lugar dos olhos de animais, incontinentes de cio. reconhecíveis lucilações: a caligrafia misantropa do suão e dos poetas, o dominó das calçadas.
surdo grito talvez: liberdades iminentes a carregar a solidão.perguntam os olhos:
-quanto pesaria a queda do teu corpo
se nela cabe somente o mar?
perguntam os olhos:
- poderá o dia, passada a lua, reconvalescer de um glaucoma mais exacto que a vida?
luís filipe pereira
10 comentários:
Que texto sublime!!!!!!
na queda iminente (compasso, plataforma, à beira de, pausa, abissal concavidade)li uma fabulosa queda para a vida. Parabéns luís filipe. Uma prosa excepcional, quadros de uma escrita perfeita.
A. C. Dias
olhos e boca precipitam-se nas grafias da noite e do dia, penetram quadros no reconhecimento do lugar, do corpo entregue ao apelo do grito surdo do mar e da queda, na vertigem da vida? belo texto de grande qualidade. rui
luagrafia dois ou a dois?
achei o texto belissimo.ainda bem que descobri o seu blog.quer visitar o meu? http://desenharescrevendo.Blogspot.com
fico consigo nas palavras.um abraço teresa roza d'oliveira
Um Texto maravilhoso. Uma prosa mais-que-perfeita. Bem haja, Luís Filipe Pereira.
Ricardo G.
Parabéns! O texto é fulgurante, a iminência, o à beira de, a vertigem da queda entre o texto elidida, fantástico!
Mariana A. Frazão
um texto, mais um, apaixonante.~
Parabéns! Obrigado.
M. Besse
Magia Pura!
Parabéns,
obrigado.
G. Cruz
"surdo grito talvez", poderoso, fundo,nesta escrita tão especial, inovadora, fabuloso texto!
Ana L. reis
Diria: um conto (excelente, brilhante) mais exacto que a vida porque a perscruta com uma exactidão só ao alcance de um grande escritor.
(este blogue já está nos meus "favoritos": lindo, lindo)
Mariana Peres
Uma forma de narrativa absolutamente original e preciosa, plena de sobreposições, de aberturas e porosidades, poéticas inesperadas e arrabatadoras.
Tiago P.
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