quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Algo do verde nas algas de Laura Cesana (fragmento)

algo se presentifica no frescor da memória que reverdesce. algo das algas relincha nos alvores submersos entre a poalha de cinza e os espelhos de chumbo que nos impedem o tempo dos insectos. podemos agarrar-nos aos limos de uma infraestrutura transparente e ascender às húmidas constelações. que lembram ouriços e orifícios. algo assoma como um adágio selvagem dedilhado na frágil superfície do instante. das artérias verdes e impantes. algo das algas. algo de um tempo verde com a suas brânquias arborescentes. algo do agora antiquíssimo. algo de oloroso. de substantivo. de oloroso. nas bátegas do verde da chuva que cai do chão e sobe pelas paredes libertas até ao poente de um cavalo marinho. algo das algas. algo das ervas crescendo nos jardins de água........................................luís filipe pereira

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Cenas califgráficas, com A. Sena (fragmento)

como ânforas ancestrais as telas transmudam-se em estriados papiros enxameados de escrituralidades nupciais. a escrita prévia à sintaxe e à museologia das gramáticas onde se extinguem as estrelas. a géstica da escrita. a escrita da pele que insufla o sopro da expressão no esterno do espaço inaugural. letras pintadas com as tintas elementais: terra. água.fogo.ar. 4 palavras contiguando 4 manchas memoriadas no diafragma da sede. a de água & de ar. e de terra. i de início. o de fogo. chamas caligráficas ou cenas redondas, porque, heideggerianamente, o sentido se tece de labirínticos reenvios (ou seja: rios caligráficos). luís filipe pereira

domingo, 24 de fevereiro de 2008

A incerteza dos caminhos, com Paulo Nozolino (fragmento)

quando os passos voam os caminhos têm a curvatura das asas incertas. onde um pé para encaixar-se no vazio do molde que o insinua? os pés voaram para além das estreitas ruas e deles resta a nostalgia silente de uma raiz negra. a memória dos trilhos corrói meticulosamente a linha de fuga do presente. nos sapatos:nada. nos sapatos o destroço da partida para lá das varandas derradeiras. nos sapatos a lama dos vestígios como agulhas do abandono. que carne hiante vem calçá-los ainda? nenhum passo a estrugir, nenhum passo a bramir no interior das esquinas como retalhos de eternidade. adivinho os pés doridos na gótica rosácea do voo que delonga nas paralelas da névoa. na linha de terra aérea. é tão estreita a perspectiva de alcatrão.é tão nua a ausência exposta no interior dos sapatos anódinos como invertidos gansos de névoa. a intimidade expõe-se até aos ossos, até à cartilagem do tornozelo. até o tendão de aquiles se exibe para deslizar no certo vazio dos caminhos incertos. se alguém decidir voltar aos negros hortos da cidade, como aos poços sem fundo, terá um sapato à sua espera para embrulhar a verniz a sua queda? o bico do sapato rasga o cenário da branca memória até à mais fulminante degradação. cada sapato é a ferida que nos cabe? é a cicatriz que a incerteza dos caminhos nos carimbou? os sapatos são as ilhas que servem aos recifes de treva da nossa indesculpável incomunicabilidade. os caminhos caminham-nos. os caminhos levam-nos rumo às praças desertas da alma até aos cumes da nossa pele neles rebocada. até à insânia. até à medula da revoada das sombras selando a mudez da espera ao rés das trajectórias hesitantes. as que nos traçam como flechas do certo insurrecto. incerteza dos caminhos. sapatos suspensos: eis a prova (ou o negativo fotográfico que somos na sede táctil da urbano umbral da espera).......................luís filipe pereira

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

seguir com Antonio Segui

com antonio segui acotovela-me o frenético tango da multidão. como riscos de cobalto. as cidades tornam-se lagos aéreos de peixes venturosos. vaivém. sigo com segui e vejo as escamas a escorrer das axilas anónimas dos que correm para esquinas incertas. vou com eles e com a dança dos passos ondeantes à volta da extinta foz. nos gnomos das praças. dos charcos. dos alvéolos das ombreiras. perco-me como furtivo sopro entre comércios furtivos. de corpos. de águas. de duros vidros. onde a maria de buenos aires? no suor do vaivém são esponjosas as janelas nos olhares dos que descem pela alegria da passagem. nos lábios dos que sobem pelos cabelos da solidão ardendo como fósforo. lenta efervescência. os gomos da manhã. bueños dias. buenos aires. um enxame de corpos me embacia as margens. a rapariga que vende as maçãs da manhã. yo soy maria. que vende as coxas da noite aos marinheiros que nelas pernoitam. segui segui. até às migrações dos rostos que vão ruindo como pássaros. quase ninguém dentro da tarde da multidão pluridireccional. quase um sentido tropical nos passos em que só o chão é humano. passos. los mareados. segui segui e os passos supondo que os invento contra o paradoxo de zenão: o de ulisses e da tartaruga. vaivém. desdirecção de encontros nas avenidas dos acasos. segui.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

com o pé de A. Tàpies (fragmento)

com o pé de tàpiès caminho até ao mar descendo as esquinas das fábulas de gaudí. caminho por dentro das arestas de azulejos despintados. barcelona. azul.argamassa. a carne da tela faz-se às mãos silentes do pintor calígrafo de estremes manchas e poalhas. livres e intensas. cores das células. entre as células das cruzes lentas.com o pé de tàpies caminho um caminho de poros abertos sobre o mar das conchas desertas. das cores labiais. caminho na superfície aérea das violentas vogais. dos espelhos ocos. dos silêncios diagonais. com o pé de tàpies percorro a fortuna das vagas onde naufragam os passos. os sentidos.ora no mar branco das telas a pele estriada do mundo. barcelona de tinta fresca.uma varanda de gaudí onde um poema. com o pé descalço de Tàpies tropeço como se no gato irado que imperfeito se desenhasse até ao perfeito píncaro alado da sagrada família. tantas cores num breve enlace. tantos pássaros estultos como ferros.com o pé de tàpies acendo os muros nos barcos do branco das manhãs.barcelona.mancha................................

palavras ao rés da névoa que reconforta e indistingue

Olhando a janela rendilhada de bruma que se osmoseia com o azul do meu quarto. recordo, como pleura vítrea, o verso de A. Campos "o dia deu em chuvoso". Nada impede o labor aracnídeo do texto (vide Roland Barthes: O Prazer do Texto) de construir fendas e frestas, auras azuis em céus ficcionais e fluviais. nada impede um beijo de água. nada impede uma pedra vermelha a sorrir-me defronte, na humidade vegetal dos telhados. nada impede a metamorfose das antenas rasgando a névoa sólida de devirem remos, quilhas, mastros de um contra-luz de melancolia inspiradora.
luís filipe pereira

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

palavras estreantes

escrevo. abro a cena de fulgor de um espaço de partilha. sob o signo coralíneo de póeticos arquipélagos comunicantes. "estou vivo e escrevo sol" será ad infinitum o meu sangue prefacial. é também uma metonímica homenagem ao meu Poeta de sempre e para sempre: antónio ramos rosa. dia 16 de fevereiro, na livraria bulhosa, lisboa, foi reeditado pela editora Labirinto, a obra de António José Queirós, Memória do Silêncio. uma poesia depurada feita dos silêncios porosos que ateia a cumplicidade dos amantes. nessa mesma tarde, azul, de novalis sobre o jardim de entrecampos defronte, foi apresentado o nº 5 da colecção Afectos da Editora Labirinto iluminada pelo empenho ímpar da poeta maria do sameiro barroso: Afectos-amor. a páginas tantas, tem um poema (estreante também) meu: "chamar-te". a noite convoca-me, como linha de feiticeira de deleuze, para outros fascínios: filosofias: filosofemas. diria: filopoemas. a cena de fulgor como janela discreta fica, desde já aberta a todos os aprendizes e artífices do concerto das artes.
(luís filipe pereira)

"Estou vivo e escrevo sol"