sábado, 31 de maio de 2008

VOAR PARA O MAR com Bernard Descamps


entre a turbina transparente de uma harpa e o azul anzol do horizonte, amplias o corpo para outra morada.
(à tua frente uma líquida porta que espadana como lume?)
tens nos braços as guelras do espaço que propagam o estrondo dos teus pulsos entre os filamentos das águas.
(escutas o grito inaudível dos peixes vibrando como pedras volúveis?)
mas é nos filamentos do teu sangue que teces os fragmentos do tempo. mas é na desocultação do voo rente à dança das vagas vocálicas que recortas o amor. mas é no círculo do teu corpo que o mar movimenta a sua música macia.
(persegues a voz das vagas que te perseguem?)
tens a rebeldia da luz e da proa. a silhueta de água nos teus dedos desfaz a nuvem do teu nome. atravessas os navios da solidão. escavas as escotilhas onde o olhar extasiado dos náufragos alastra entre as orlas evanescentes dos teus ombros.
(o mar é a latitude da tua sede?)
segues o rastro subtil de ínvias transparência: lágrimas invisíveis troam no teu abraço flutuante.
em ti, se partires, se voares para o mar, o tempo volta à imortal voltagem das vagas. procura-te o mar que tu principias.recrudesce a espuma para a tua e minha esperança. tens o milagre do mar a percorrer o teu peito. tuas mãos são vazias. tuas mãos tão irreais. as tuas dedadas de água são lume e são lâmpada nos meus lábios.
(visto que voas para o mar, por alguma líquida razão, na desrazão do teu voo escrevo: o mar existe, uma ilha canta no teu corpo ileso).
luís filipe pereira

terça-feira, 27 de maio de 2008

VOAR (Série de 2001) com Helena Almeida/ Fragmento


voar parede adentro. perfurar o deserto com asas de areia. tão leve é a luz do voo que o estuque se dissipa. voar: eis um roçar intérmino sobre as paredes interiores. sobe a sombra a dedilhar os vestígios do vento e a cinza segue o caminho sedento de carne aérea. voas.
vens ao meu encontro se esvoaço sob a língua que diz o teu voo?
as tuas mãos já passaram através da parede enquanto se desmorona a gravidade. sem lei e sem bússula já anseiam os teus braços pelo ar. espalha-se a cinza em espasmos de cal e o ar extingue-se no ar no vendaval do teu corpo. voas.
como posso eu acompahar-te jazendo aqui com o chão continuando o pó das palavras?
os teus ombros olham os oceanos separados da escuridão como barcos bramindo contra a obscuridade.ouço-te as asas sob os pregos do soalho parecendo surdir dos meus ouvidos. voas.
virás soltar-me da cadeira em que escrevo se sobre ela deixaste uma interrogação continuada?
a tua cintura é já cristal flutuando entre os cristais das constelações que imitam as aves.voas.
trazes-me asas para o voo?
sobre a cadeira que deixaste ocupas o lugar destas palavras.
é uma forma fugitiva de estar no teu voo?
então empurro-te as pernas parede adentro. empurro-te os pés. estou voltado para a parede.é para ti que o mundo dos mundos está voltado. voas. sentado sobre a cadeira com a parede defronte pousa a minha mão na página como se pousasse sobre uma pedra. mas tu estás nos espaldares do mundo. o teu coração é o coração do mundo. diante da parede sei-me atrás do horizonte. sei-me no poente dos passos. sobre a cadeira como cratera de chumbo. mas voas. no interior do teu corpo exila-se o teu corpo.
voas. voa.
não quero reter-te nas palavras.
voas. voa.
luís filipe pereira

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Do Lido e do Visto, "Arte poética" de Daniel Faria (Quasi Ed.) & Magritte

"A palavra despe-se

O silêncio despe-se

Nus

Os sexos ardem

Os seios da palavra

Os músculos do silêncio

O silêncio

E a palavra

O poeta

E o poema" (Daniel Faria)

a palavra percorre os sentidos. mergulha na margem da carnação sem destino. tacteia sem perguntar para troar a pele no seu langor de lâmpada. a palavra nua frequenta o domínio encantado e suporta na luz dos seios a pausa de sede entre dois sons. como achas os sexos segregam nos corredores da noite suas luzes vacilantes como versos. versos sobre ventres. sobre trompas de silêncio. o poema é uma pele encontrando outra pele que nela se abriga. o poema e o poeta: duas mãos que migram palavra a palavra. músculos descaindo para a cintura até à nua linha do osso nítido onde escreve uma esquírola de desejo o esmalte dos degraus alçados pelas despidas palavras.

luís filipe pereira


quinta-feira, 15 de maio de 2008

Do Lido e Do Visto: Poema "De Bombordo a Estibordo"de João Rui de Sousa (in Quarteto para as próximas chuvas, D. Quixote, 2008)& Vieira da Silva

" E navegavam
- tal como em tabuleiro de xadrez já muito gasto". e por vezes o tabuleiro, depois do marfim misturado, dura além do assombroso anoitecer das mãos concentradas em manusear o claro-escuro das peças da conjugação do mundo. lentas as mãos avançam "pela eterna constância das diagonais". num langor de sombra as mãos protegem na ávida solidão o taciturno rei. e levam a rainha a desplumar a esmo os espelhos invertidos nos olhos de silêncio do outro jogador. a rainha mais veloz do que o trote vesperal dos cavalos.os dedos gastos empurram os esgotados corpos dos peões. corpos cravejados pelo veneno da insobrevivência. despedem-se sem um silvo e rolam rútilos sobre as margens lôbregas da mesa. reerguem-se as torres. "torres rectilíneas, vigilantes, /abrindo em suas trompas o seu espaço". os esgarçados dedos nelas pousam o plinto do apelo dos peões esmagados. as mãos ascendem no tabuleiro ardente. efémero como um compadecido trapézio de treva no ondeio das peças cada vez mais desconjuntadas. crescentemente o mundo é o mastro quebrado no baixio dos braços. nenhum fulgor sobrevive. ressuma o rastro de escória entre a vitória e a derrota. ambas estrelas mortas "de um tempo fragmentário, fustigante". sobre a mesa o tabuleiro vazio como um vulto bastardo sobrepõe-se à linha do mundo. troa a teia. as mãos arrastam o seu séquito de nada até aos bolsos e afundam-se na sombra àspera do sono. o mundo sobre a mesa recompõe as peças como golpes reclusos. a eles retornarão os jogadores que hão-de recomeçar. que hão-de revolver o lodo dos destroços com as mãos pacientes em demanda dos prelúdios de portos. os jogadores hão-de coroar o passatempo até que se convertam, "de bombordo a estibordo", aos alpinos ceptros alçados por pulsos de pedra.
luís filipe pereira

segunda-feira, 12 de maio de 2008

11 de maio de 2008 ou na resssaca de uma tarde prodigiosa: lançamento de As Vindimas da Noite

museu nacional de arqueologia. visíveis os vestígios. a filigrana dos gestos. os trilhos e as luminárias das vésperas redivivas. ânforas e diademas de silêncio. vasos de sede voltados para o tejo. mapas de singrar no tempo. moinhos de singrar no espaço em rotações remotas e deflagrantes. uma sala com a nobreza das nebulosas e do cinzel. com a dignidade ígnea das esquadrias afáveis (contra a retumbância da solidão dos barcos amurados na cidade) como manchas de elipses. ecoa a música e a memória feliz expande-se, andamento a andamento, pela luz fluvial debruçada no ciclorama das janelas. o piano e o violoncelo remam com o saxofone em duas canções de F. Sor. a guitarra de Ricardo Barceló estende a esteira do instante ao canto de José Corvelo. Na capa de Júlio Cunha do livro de Maria do Sameiro Barroso - As Vindimas da Noite - adormece um rosto que sonha socalcos de afecto ou vindimas entre as palavras e a penumbra de júbilo dos violinos. as pálpebras cerradas numa refulgência de portos escutam melhor os estuários calorosos do vinho derramado (são secretos corredores estróficos). o sonho crepita. a cal floresce. apresento o livro através de uma tetralogia de socalcos. a voz desmuralhada de Isabel Wolmar apanha os bagos dispondo-os na mesa comunial da poesia. o mar entra no tejo tingido do vinho ou os versos encontram o mar no seu bramir de bagos. de barcos. de brisa. os moinhos dançam (uma valsa de versos encontrados). o museu está vivo. (ouve-se o rumor secreto do ouro). o museu cada vez mais arqueológico. cada vez mais vivo alçado na festa dos poemas. no vocabulário dos encontros como uma vagens de búzios. assim foram as «palavras acesas»: "As vinhas eram rios vermelhos que, na louca/respiração da chama, ascendiam. /Nos jardins de absinto, a música ecoava, /em paraísos doces" (in As Vindimas da noite, p. 43). estavam descerradas as pálpebras do rosto sobre a capa. despertaram com(também os nossos e de todos quantos lerão este precioso livro de Maria do Sameiro Barroso) "os olhos acesos da segunda lua".........
(dedico este trecho ao Editor da Labirinto, João Artur Pinto: por permitir
os cursos das tábuas de mundo da poesia (por me ter convidado para o Conselho Editorial da Labirinto); à Maria do Sameiro: pelos aromas da amizade e pelos caminhos de neblina da sua belíssima poesia; ao Dr. Luís Raposo: por acolher a poesia num espaço nobilitante: aos presentes e futuros leitores do livro As Vindimas da Noite que abriga um meu posfácio)..............................
Luís filipe Pereira

segunda-feira, 5 de maio de 2008

AS VINDIMAS DA NOITE de Maria do Sameiro Barroso: um livro de poesia onde os as varandas dos lábios pousam nos versos lembrando o vinho



Lançamento de As Vindimas da Noite, domingo, dia 11 de Maio, no Museu Nacional de Arqueologia, às 17horas(apresentação minha e leitura dos poemas por Isabel Wolmar sob a nebulosa de afectos da Editora Labirinto)



As Vindimas da Noite. uma obra de poesia onde retumba o som do mágico mosto de uma criação noite adentro. noite de versos lavrados rente ao ouvido como epicentro de um lugar e de um tempo mais serenos e mais sedentos. abrigando e propagando os meandros da memória. versos tingidos de dulcíssimo vinho crescendo das luxuriantes videiras das imagens. da matéria das metáforas. onde florescem os protocósmicos vinhedos do mundo. Maria do Sameiro traz-nos uvas nas palavras. e coloca-as sobre o tampo do tempo. sobre a mesa das feridas fechando-se por entre os arabescos do silêncio.


nesta obra multiplica-se o vinho nas mesas comuniais da poesia.


entre a música e a memória tornam-se mais claros os tortuosos caminhos cavados em versos que cheiram a vinho. que sabem a vinho. e descem a noite até ao sol descendo a encosta das pálpebras. um livro onde a voz é clara e poliédrica cruzando artes e afectos respondendo-se e enleando-se. uma voz vínica e dionisíaca desferindo acordes insubordinados que um violino sustenta. porque os socalcos são a invenção dos vinhedos do início. por momentos de inebriante leitura ondula a ramaria do desejo de um arco. de uma aliança intérmina com o mundo. com as primordiais margens da luz golpeando a noite arborescente. a noite da criação numa pauta de aromas que perduram como lunações. aquecendo-nos como lábios os criadores labirintos da noite.


As Vindimas da Noite: um livro de poesia ou porque o sol no próximo domingo será mais música e será mais poesia. será mais perfume e será mais malvasia.___________________________


luís filipe pereira

quinta-feira, 1 de maio de 2008

A memória também é um guarda-jóias (dedico este fragmento à Inês Nunes)

os amigos: signos de uma límpida lâmpada. as palavras dos amigos: colares de afagos. amigos. os que nos marcam e nos tatuam com cálidas cores são um tesouro transparente. tão precioso. são um timbre de sílex. jóias semeadas e suspensas nos jardins da nossa pele. amigos: talismâs da terra iluminada. a memória é também um guarda-jóias onde cabem as delícias do alento. as torres de luz que nos levantam. os anéis que nos circundam os dedos como chamas de pontes. os amigos: diademas de gestos efémeros engastados nos diamantes do eterno. se nos morre um amigo morre-nos o poeta que escrevia girassóis nos nossos ombros. se nos morre um amigo morre-nos o sabor de um sorriso futuro. morre-nos um feixe. um figo. ou uma flor. se nos morre um amigo nasce-nos a verdura de um verso de minúcias e de memórias. nasce-nos uma pedra preciosa que permanecerá fruto fulgente. no guarda-jóias do coração transparente de tristeza. porém como aliança de viva alegria visitada e abrigada. tecida pelo tempo e na pele sob a pele tranfigurada..............................................................................luís filipe pereira