sábado, 12 de janeiro de 2013

ZOOM

(IMAGEM: PAOLO NOZOLINO)
O mar sobe os alpendres


Aí desvendamos, na soleira dos dedos,

Os nomes diurnos das pedras

Para adormecermos depois

No canto nómada das casas.



É aí, nesse estar, rodeado de relento

E de astros e de aves,

Que se imiscuem em nosso sono insectos,

Mínimos, insones,

... Cujas patas,

Cujas asas,

Se percutem nos círculos a prumo

Das águas.

Insectos tangendo nossos ombros

Dançando por dentro do fogo das falanges

Levantando as estacas dos dias

Nas moradas abertas ao lado,

Larguíssimo, do mar.



É aí que são fragílimos fios de sede

E soam a lucernas acendendo-nos o peito:

São sôfregas fileiras fazendo com que as ruínas do mundo ascendam

Os degraus enlouquecidos de sul,

De iodo,

De sal

E de estevas.



De oriente chegam os pássaros do vento

E é este estar que tremulam,

Trazendo ao canto das casas a ternura de árvores,

de prados alucinados de tão atlânticos,

E mais perto,

Ocidentais fendas no reverso das pedras,

Ficam os frutos amadurecendo

Sob o fascínio da cal

E desse mar trabalhando-nos no coração

Mansas planícies de treva.



Aí me alegra a alegria desses insectos consonantes,

Liricamente,

Com a claridade de invisíveis cinzéis,

Enchendo de levantes

Os cantos das casas

E tudo o que entardece,



Enquanto demoram as pedras

Enquanto restolham astros e aves,

Enquanto o vento risca os versos,

Enquanto resta rente a pulsação do sono,

Enquanto a implosão e o incêndio traduzem o tempo

Com os lábios nos lábios,

Com o mar no mar,

Enquanto um ditirambo de sereia,

Soberano,

aplaca a distância nos alpendres,

Deliciosamente,

Desnudando-se.                                        luís filipe pereira

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

UM ECO NA MÃO

imagem: Jorge Molder




porque chega, improvável e exacta, a tua mão


quando num rumor elíptico se afasta a minha


para desembocar numa secção da luz


em que o centro se rompe,


deixa-me escutar de novo o dividido calor do canto


onde, qual ave, próxima e longínqua, me afunde


porque é tão sumário o sabor da ausência


e tão abrupta a alba da despedida,


deixa-me soletrar nos ressaltos dos recifes


de ancas moventes, macias, reluzentes


onde possa como árvore, verde vírgula, adormecer




porque se afasta a tua mão


quando a tange a minha com os tensos braços da manhã


deixa-me iluminar esta ilha que refulge nas vértebras de um mar


todo fluxo, todo ossuário e ombro, busto azul do abandono


porque conto pelos dedos os dias que agora são dedos de memória


deixa-me agarrar a entoação dos ecos,


essa nervura de ti a que acediam as chuvas do meu corpo


nas vertebrais colunas do ocaso.




luís filipe pereira

terça-feira, 6 de setembro de 2011

ESTRADA, AO SUL

imagem: Robert Frank



Era uma estrada de silêncio,


espécie de porto onde pode a pele


rasgar do horizonte o leme das feridas


as cúpulas das cicatrizes,


e então encontrar a resiliente ruína,


esse vazio de náufrago vertido na página


em que houvesse o poema desertado da harmonia.


Uma estrada nascendo da poeira,


da pura ciência das cinzas,


onde os nomes eram percutidos pelos martelos do esquecimento,


prévios ao modular-se da vida pelos sulcos da manhã


ao mar virados, ao aoitecer das âncoras.


Era uma estrada de silêncio


a desfolhar-se na locomoção dura das horas


como se em páginas pronunciadas pela verbal cal do vento,


nela emudeciam as rosas e o vinho


como se morresse o seu eco


muito rente ao descaminho minucioso dos dedos.


Como nela envelheciam os frutos e as fogueiras,


como nela se extinguiam os emblemas das flutuações da água


que empurram as palavras para o coração da cor


e, liquidamente, do ardor do alento.


Nela porém o poema ousará o crime de erigir novas cicatrizes,


descuidando do clamor dos astros e das direcções amantes,


porque o poema debate-se nas cinzas


opera vagarosamente,


move as suas mãos mandibulares ao longo da letargia,


ao leme da sabedoria do silêncio,


lábio que tremula.


luís filipe pereira

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

AS PONTES

(Imagem: van Gogh)



sei que persiste a mudez igual a um país de pedra


sei que a solidão é feita de folha persistente


mas invento extravagantes estacas

a fim de amparar a água fala a fala



sei que os muros visitam a viuvez das madrugadas

sei que espadas iluminam a extensa cegueira do meu corpo

sei que são de sangue as grades como um grito de socorro


mas construo hieróglifos de claridade

para nomear as hélices de ubíquos navios



sei que soam estrondos de balas sob o sono dos braços

sei que se despenham caminhos entre dedos cansados

sei que a morte tem ameias como aranhas aprazadas

sei que as gaivotas se submetem aos carações de granizo


mas escrevo lábios e punhais flores e faluas fomes e pulsos

para que me iluminem as pontes

e nelas beba os lúcidos líros em que fremem os barcos

entre mãos mansas e abertas


sei do avanço do tempo e do sal sobre o torso da tristeza

mas iluminam-me as pontes que invento
em verbos onde jorram varandas janelas
na altitude do amor
no sem resto das lâmpadas livres

pois se reergo pontes é para respirar

luís filipe pereira

sábado, 18 de setembro de 2010

Poema sobre a terra triste, chorar cerzido no choro

imagem: Joseph Beuys
(Sob o mote: A Terra, partilho convosco este meu poema recentemente publicado no n.º 12 de Saudade - Revista de Poesia, edição especial que contou, entre outros, com a colaboração dos Poetas:Amadeu Baptista, Ana Luísa Amaral, António José Queirós, António Salvado, Armando Silva Carvalho, Daniel Jonas, Fernando Echevarría, Fernando Guimarães, Graça Pires, João Rui de Sousa, Jorge Reis-Sá, Luís Quintais, Maria João Reynaud, Maria Teresa Horta, Nuno Júdice, Pedro Sena-Lino, Rosa Alice Branco, Vasco Graça Moura, Yvette K. Centeno)________________________
_______________________________________________
na memória sobram os sulcos
...............................................
das ilhas de cinza órfãs de esperança
dos barcos ceifados na rotina do medo
das fomes no lugar das bocas
dos cantos enforcados no ocaso das espadas
das vozes inclinadas para o vento obeso dos obuses
das crianças coaguladas vertendo tristeza
rosto a rosto como eczemas da escuridão.
que nome dar aos girassóis endurecidos
se tão seco e sujo é o rumor da terra esquecida
dos dias limpos com mansas monções de luz?
escuto a terra
que ruge por entre rasgados templos
vejo-a
igual a um animal com minucioso cheiro de morte
mordendo o sitiado sangue entre crimes e feridas.
..............................................................................
não acendem as madrugadas as orquídeas do amor
tampouco as descomedidas águas da humanidade
choro que seca pelo nosso não chorar.
que arma amante do fogo poderá achar
a aragem verde dos caminhos e a trânsfuga do canto?
que mão para esquiar a neve negra das escoriações
e soerguida encontrar a nudez das estevas por semear?
cega é a lâmpada da memória
...........................................................
sua estatura lavrada pela mágoa esfriada
edema a edema como sub-reptícias ruínas
.............................................................
em silêncio sangrando-nos candeias e chuvas
em noite de manhã nunca chegada
denuncia-nos
o duro deserto da terra
os sonhos traídos, substituídos
pelo vício desertor.
luís filipe pereira


quinta-feira, 17 de junho de 2010

E É DE NOVO VERÃO NA VARANDA DO VERBO

(Imagem: A. Tàpies)
post-scriptum_ dedico, in memoriam,
este poema a José Saramago:
"o sentido não é capaz de permanecer quieto,
fervilha de sentidos segundos, terceiros e quartos,
de direcções irradiantes que se vão dividindo e
subdividindo em ramos e ramilhos,
até se perderem de vista"
(in Todos os Nomes)
E sob a sombra das imagens
Entre espuma negra
Adejam
Como nomes nus
Em estrofe lentíssima
Os calcanhares
E emplumam-se
Cheios de bocas
De barcos
De bosques
Rescendendo
Bravios
Com aves
Concêntricas
Entrelaçadas
E desejo-te
Desde o sanguíneo sargaço
A desenhar-me a pele
Com bátegas de búzios
Com limos de lume
Erguendo-se
Erosivos
Como um tráfego de feridas
Que fugisse do tempo
E o leme da pele
É uma linha
_____________
De linguagem
A parecer um mar
Que ao passar pela respiração
Se rasgasse
Manso
Violentamente
Só de repetir a matéria
Do grito mais rente
Na manhã repentina
Como se em seu ressoar
Encontrasse o mundo
O espaço duma estrela
Coada em verso que escrevesse
A escalada duma voz
Noutra voz
E espécie de gravitação
Entre as roucas rosas
Sempre sós
Em vermelha radiação
Ou estelar gramática
Esvaziada de pedras
De palavras
Ou este tremor de desejar-te
A talhar-me os dedos
A debater os cegos mastros
Entre a espuma
Memoriando-os
Sobre os passos
E é de novo verão
Porque mais nua a noite
Dos nomes
E devagar
Um rumor em resposta
Doridamente
Desde os calcanhares
À luz sôfrega
Que vem da sede
E suponho ser solidão
Da carne intocada
Da consciência inerente
A perder o pé
No caminho
luís filipe pereira

quarta-feira, 28 de abril de 2010

DAQUI EM DIANTE

(Imagem: Escultura de Baltazar Torres, Wave/2009)


para Fernanda Apolinário





É submersa em meu sangue

que mora a memória

dum mundo


na sua força de epigrama


na sua fala de esporângio


dum mundo


à beira da boca


como angular


asa por abrir


É rente ao remo


que se afunda


qual onda sob os ombros


da medida das manhãs


o ritmo das dispersas


varandas de sal


como a verdade espessa



em eólicos dedos



É na florida fronte


em padrão coeso

qual cálamo rendado de cais


que nos confins de pedras


de pássaros


afora de todo o espaço


se ergue o vento


como efémera estaca


do sonho


sem medida sacudido


quase veia flectida


sobre os filetes do verão


quase queda


quase dança

dum mundo nu de mundo


já dobra de nuvem

de nome

na janela


a rebrilhar


ribeiras vermelhas

brancas


no estanho desolado

baço

exogenamente riscado


do esquecimento.



luís filipe pereira

segunda-feira, 22 de março de 2010

O POEMA COMO TRAÇO


(Imagem: Paulo Nozolino)





na luz
da tua luz
como espuma
esconsa
se requebra
o sucessivo.


horizonte de hastes
de barro de asfalto
torce-se o tempo
à transparência
do inerme traço
___________
a lume
irradiando
da lâmpada
no seu langor
de lâmpada
.

ouço-te
vez primeira
no meigo metal
vesgo e gasto
das palavras
esplendidas
à margem
da gravidade
de golpes
de genomas
de mel.

uma treva
atrás
sabia-me
vapor
vertido
agora
na sombra
da sombra
cometa
caindo
sequiosa
vertigem
de saquear
das esquinas
o sumo
das estradas
a sabedoria.

vejo-te
dançando
pássaro
estival
espelho
deslumbrado
entre
pálpebras.

à volta
dos estilhaços
com geometria
vaga
esboço
vesperal
a cidade
gangrena irradiada
istmo
de vento garroteado
eterno êmbolo
do verso.

dou-te
os espaldares
dos dedos
e deixo-te
seguir viagem
intérminos
instantes
pelo canto
pétreo
ângulo de árvore
anoitecendo-nos.

uma treva
adiante
açude esclarecido
eis-me
címbalo
a monte
cravado
na noite
sob luas
de luas
cujas ancas
de sal
segam
caminhos
.

luís filipe pereira



domingo, 28 de fevereiro de 2010

CADEIRA INSULAR

(imagem: José Pedro Croft)


Dedico este poema à Bri e ao reflorescer da Madeira
É de água este silêncio
(se pudesse rasurava a água)
Escuta-o mudo o meu sangue
Frente às flores submersas
Entre pedras rodando dentro
Das corolas doridas dos ossos
No vão do muro
O ombro das vésperas
De veias.
Onde existe o olor da vida
Enfim lavrado o litoral
Do espelho?
[O rumor iniciou-se nas rótulas
Inclinei-me inteiro depois
Da cadeira ao crânio
Na direcção distante
Da fragílima fábula
Duma encefálica ribeira
(se pudesse rasurava as ribeiras todas)
Sonora soçobrou
Qual haurido hemisfério
A minha alma
É com silêncio e sangue
Ardendo ambos
Que olvido a voz da chuva
(se pudesse rasurava a chuva)
A obcecante carne a oxidar-me
Sobre os joelhos
Após o branco
Eu uma bramida barca
À boca dos mil muros erodidos
(ao rés da vacilação da água rasurada)
o espelho estilhaçado]
A cadeira deixada para trás
Sentar-se-á nela o lugar
Do leitor?
A ideia é fazê-lo aliar-se
À outra vertente do muro
A que começa no chão
Mutilado de alma
Após as cegas chagas
As que ardem ainda
na cadeira
luís filipe pereira

domingo, 17 de janeiro de 2010

Viajante de verão dentro da VIAGEM DE INVERNO/Schubert

poema viandante que dedico ao momento magnífico que ontem, no CCB, vivi pela voz de Rufus Müller, pelas mãos de Maria João Pires, pela música de Schubert, pelos versos de Wilhelm Müller de Winterreise (Viagem de Inverno)
Gute Nacht
Fremd bin ich eingezogen,
Frem zieh' ich wieder aus.
Der Mai war mir gewogen
Mit manchem BlumenstrauB.
_____________________
Boa-Noite
Estrangeiro, cheguei.
E estrangeiro parto.
Maio acolheu-me favorável
Com muitos Ramos de flores
(Wilhelm Müller)
Lá fora, o verão fustiga vagamente
os seus frutos.
Flutua a planície sede fora
num ondulado frio,
a arder.
Ouço o refulgir espesso do mar
de milho esquecido nas eiras.
Pouso a cabeça sobre o som,
atiço a sombra do sonho.
Com o vento -
este segredo de sede a vogar
nas minhas mãos -
vagueio pela casa.
Sento-me sobre os calcanhares
dos vultos, entrelaço-os no canto.
Ao fundo, fitam-me, vagarosos,
os degraus pensativos dando a ver
a porta.
Mais ao fundo, sob a secura
dum girassol de gelo e fogo,
escuta-me o eco, imóvel, do poço.
Até às entranhas entardeço.
Escrevo na escada estival
os teus passos. deixo-lhes,
no mais escuso degrau uma urze
e esta dedicatória que desponta:
lê lentamente a subida, alonga-lhe
o som. desci à cave quebrada onde
o vento é quase compacto, quase
latido de lume. desci às camadas
mais frias e fundas das calmas
variações da casa.
Desço à cave.
Estou no centro, na traqueia
da treva lenta.
Teias entrançadas, de brisas de aranhas
de bocas, espalham o espaço em torno.
Sinto uma tranquilidade saturada,
o ressequido em redor, sem nome.
Escorre-me o pensamento,
lança e lâmina,
pelos pilares, pelo que sobra das raízes
submersas no esguio meio-dia
dos escombros.
Cá dentro, deixo uma lágrima
morrer-me.
Nos dedos tão audível é o marulho
duro da vida, do vento: altissonante
abandono.
Nenhuma lágrima.
Nenhum passo teu,
porque nenhuma estalactite
a cair-me nos pés,
porque frio fruto nenhum
a anunciar-me que chegaste.
luís filipe pereira