domingo, 17 de janeiro de 2010

Viajante de verão dentro da VIAGEM DE INVERNO/Schubert

poema viandante que dedico ao momento magnífico que ontem, no CCB, vivi pela voz de Rufus Müller, pelas mãos de Maria João Pires, pela música de Schubert, pelos versos de Wilhelm Müller de Winterreise (Viagem de Inverno)
Gute Nacht
Fremd bin ich eingezogen,
Frem zieh' ich wieder aus.
Der Mai war mir gewogen
Mit manchem BlumenstrauB.
_____________________
Boa-Noite
Estrangeiro, cheguei.
E estrangeiro parto.
Maio acolheu-me favorável
Com muitos Ramos de flores
(Wilhelm Müller)
Lá fora, o verão fustiga vagamente
os seus frutos.
Flutua a planície sede fora
num ondulado frio,
a arder.
Ouço o refulgir espesso do mar
de milho esquecido nas eiras.
Pouso a cabeça sobre o som,
atiço a sombra do sonho.
Com o vento -
este segredo de sede a vogar
nas minhas mãos -
vagueio pela casa.
Sento-me sobre os calcanhares
dos vultos, entrelaço-os no canto.
Ao fundo, fitam-me, vagarosos,
os degraus pensativos dando a ver
a porta.
Mais ao fundo, sob a secura
dum girassol de gelo e fogo,
escuta-me o eco, imóvel, do poço.
Até às entranhas entardeço.
Escrevo na escada estival
os teus passos. deixo-lhes,
no mais escuso degrau uma urze
e esta dedicatória que desponta:
lê lentamente a subida, alonga-lhe
o som. desci à cave quebrada onde
o vento é quase compacto, quase
latido de lume. desci às camadas
mais frias e fundas das calmas
variações da casa.
Desço à cave.
Estou no centro, na traqueia
da treva lenta.
Teias entrançadas, de brisas de aranhas
de bocas, espalham o espaço em torno.
Sinto uma tranquilidade saturada,
o ressequido em redor, sem nome.
Escorre-me o pensamento,
lança e lâmina,
pelos pilares, pelo que sobra das raízes
submersas no esguio meio-dia
dos escombros.
Cá dentro, deixo uma lágrima
morrer-me.
Nos dedos tão audível é o marulho
duro da vida, do vento: altissonante
abandono.
Nenhuma lágrima.
Nenhum passo teu,
porque nenhuma estalactite
a cair-me nos pés,
porque frio fruto nenhum
a anunciar-me que chegaste.
luís filipe pereira

57 comentários:

Anónimo disse...

Palavras? Sim tantas as que seriam devidas ao poema que nos é dádiva.
lágrimas, sim, porque impossível não descer com este sujeito poético - subjectividade unânime - nesta viagem até à Cave, lágrimas se a leitura escorre até ao "centro da traqueia da treva lenta". Tão belo. tão belo. Schubert comporia baseado neste poema! Quero ver, ouvir,tocar, saborear, cheirar este Poema. Admirável!

Candeias.

Branca disse...

Luís Filipe,

Se o seu momento no CCB foi belo, o noso aqui não é menos belo, por tudo que nos dá.
Dizer mais só é possível fazê-lo com um silêncio reflectido e vivido, sentindo cada palavra do seu magnífico poema ao som de um belíssimo Chopin executdo pela nossa extraordinária Maria João Pires.
Gostei imenso. Obrigada.
Branca

Anónimo disse...

que partilha memorável: como torna belo e intenso esse momento musical que tão por dentro viveu... como transforma beleza em beleza... como nos emociona com a sua originalidade, entrega à palavra e às suas múltiplas superfícies e profundidades. Extraordinária intertextualidade: eco além do eco.
T. Cadete.

Anónimo disse...

também o subPoema - dedicatória que "desponta" - no todo orgânico e soberbo do poema é música dentro da música, como se o "tocador de realejo" (Der Leiermann) o acompanhasse. Um Grande Poema!
com Admiração.
M. Tamen

Marcelo Novaes disse...

Luis Filipe,



Altissonante Catábase.





Abração,










Marcelo.

@vitinhobinho disse...

Obrigado pelo comentário amigo! é importante pra mim sua opinião =)
Gostaria que lesse minha ultima postagem e também comentasse a respeito do exemplo de vida de Yumi faraci, http://vitinhobinho.blogspot.com/2010/01/tudo-e-possivel-quando-voce-faz-o-seu.html#comments

Linda sua poesia!!

@vitinhobinho disse...

Obrigado pelo comentário amigo ! É importante pra mim ler as sua expressoes sobre meus textos !
enfim postei um texto sobre o exemplo de vida de Yumi Faraci gostaria que lesse e desse seu parecer
http://vitinhobinho.blogspot.com/2010/01/tudo-e-possivel-quando-voce-faz-o-seu.html#comments

ps: linda a poesia daqui

manuela baptista disse...

boa tarde
estrangeiro, cheguei

não fossem as palavras
a conquistar-me
e ainda não as tenho todas

seria Schubert!

um abraço

Manuela

luís filipe pereira disse...

Caros visitantes, amigos, intertextuantes, muito vos agradeço a gentileza, a sensibilidade, a generosidade.Emocionam-me vossos ecos como se aceitassem descer com o sujeito ´poético deste poema, este viajante de verão que se adentra na Viagem de Inverno, porventura, assim a escuto, assim a percorro, até à fundura de nós mesmos.
grato por alongarem o som.
filipe

Anónimo disse...

Impressionante.
notável exploração dos signos.
ritmo, verbal melodia.
intensidade.
significados e significantes, lateralidades, vértices diacríticos.
poesia que toca, convoca, emociona,
cheiro a frutos. odor do frio.
queda, ascensão: "tranquilidade saturada" em sublime tristeza.
Imprimi o poema. Fá-lo-ei chegar a Maria João Pires.
impressionante, poema, schubert amá-lo-ia.
S. Carneiro

Anónimo disse...

Este blogue: sem dúvida o Meu Livro
preferido.
Parabéns,
No Poema: a excelência de sempre,

J. Amaral

Anaquariana disse...

O eco das palavras no meu peito e a minha alma cheia, entrando nesta Viagem de Inverno que percorro até ao fundo de mim mesma...

Obrigada por este momento.
Um abraço


(Obrigada também pelas vezes que me visita, volte sempre. É um gosto e uma honra a sua presença)

Anónimo disse...

BRAVO!
Como no concerto os aplausos quebrariam a magia da Viagem, deixo as palavras sobre este POEMA para o final de muitas leituras mais. Quero descer primeiro degrau a degrau, verso a verso.

A. L. Amaral

Anónimo disse...

Catábase mais-que-perfeita.
Brilhante.

Inês

Anónimo disse...

"lança e lâmina" ou poesia pensada em tom Maior.
H. Miranda

Anónimo disse...

lancinante
mente
Belo.
Parabéns.
T. V. peixoto

Luísa disse...

Também assiste à sinfonia e aprecia os seus tons!
Estarei na plateia a ouvir...
Beijinho terno!

Aleph disse...

A qualidade do costume, a sensibilidade de sempre, a intensidade habitual.

É muito bom poder ler, sentir e acompanhar, de forma dialógica, um dos meus poetas contemporâneos preferidos.

.............
A l e p h

Anónimo disse...

sublime.

luís filipe pereira disse...

Caros Intertextuantes, é um privilégio enorme contar com vossos ecos, afectivos e exegéticos, é muito bom para mim sentir a vossa comunial sensibilidade ao Logos poético. A todos, muito obrigado.
Uma palavra especial, a "Aleph", cuja poesia muitíssimo admiro, as suas palavras são importantíssimas para mim.
grato,
filipe

Anónimo disse...

Absolutamente magnífico este Poema incondicional meu fascínio pela sua escrita.
M. Horta

Anónimo disse...

"nenhuma lágrima.
Nenhum passo teu."
....................
.....................
e o poema move-se no vaivém /viandante pelas profundezas da solidão,,,,,,,
catábase interior, extrema a que o poema veicula e como é soberba a sua construçãom torna-se de todos os leitores.
Excepcional, parabéns1
M- queiróz

Mar Arável disse...

Um belo concerto de sons

nas palavras

Parabens

Anónimo disse...

melancólica harmonia, sombria e triste. Tal como escreveu Schubert, "as minhas criações existem pelo meu conhecimento da música e da dor", também a tua criação poética revela o encontro permanente com a poesia, onde "a tristeza é ainda o único estímulo que nos resta". rui

Eleonora Marino Duarte disse...

luís felipe,

fico comovida ao ouvir maria joão pires executando as notas dos eleitos pelo talento irretocável desta mulher, então eu imagino o que teria sido vê-la executar schubert e toda a embriaguez que dele se salta nas composições,

ainda houve o poema

e agora o teu verso coroando o momento não deixa dúvidas do quanto foi maravilhoso estar lá.

mais ainda, houvesse só o teu verso as emoções seriam imensas do mesmo jeito.


além da poesia tão bem construída, o teu blog ainda nos oferece passeios sensoriais muito agradáveis e inspiração para nosso trabalho.

grande abraço!

luís filipe pereira disse...

Agradeço-vos, sempre genuina e emocionadamente, pelos ecos que enriquecem muito o poema, insuflando ânimo a esta partilha, a esta intertextualidade.
grato,
filipe

Anónimo disse...

Uma voz original e originária: a sua poesia além de notável é reconhecível, tem um estilo dentro, uma voz autónoma dentro numa poesia que é incontornável.
O poema, verso a verso, está sempre num nível elevadíssimo a todos os níveis: imagético, sonoro, significativo, metapoético, num amor visível, tocante, à língua, à palavra poética.
Minha admiração.

P. Mendes

Anónimo disse...

"Ouço o refulgir espesso do mar
de milho esquecido nas eiras." lindo...............tão belo. Ouvi, por dentro do poema, Schubert, as "variações da casa" como lugar incerto do abandono viajado, como lugar da espera, como uma nota musical a solicitar outra, ouvi a friura, ouvi a estalactite do verbo a ressoar num poema antológica, magistral.
Bravo! todos os encores do mundo
A. Branco

Anónimo disse...

Voltar a este blogue: inspirar e expirar, preciso deste espaço caro L. Filipe Pereira.
A sua Poesia é fascinante.
A sua escrita traz a frescura do novo: é sinfonia de pensamento e sensação, de ideia e imagem, é densa e tem uma subtil intensidade do que é leve como um dom.
Obrigado.
T. bettencourt

Anónimo disse...

Fui ver o Concerto.
o L.F. Pereira reinventa-o, transmite-nos a atmosfera com uma vibração amplificadora. Excelente também essa intertextualidade que há uns tempos vem entabulando com a música.......
Que pena este Poema não constar da brochura do espectáculo do CCB!
Coloquei a musica de Schubert no pc e leio e releio o seu poema e o seu viajante de verão está verdadeiramente dentro do corpo/espírito da Viagem de Inverno, deambula por/com ele.
sublime.
M. P. lima

Anónimo disse...

"ondulado frio,
a arder" = beleza em estado bruto.
Mais um poema notável.

D. Guimarães

Anónimo disse...

"o marulho duro da vida" que ressoa no Poema, com uma evidência radical, além da espuma do imperene.
Um poema fabuloso.

G. Bessa

Tere Tavares disse...

Um agridoce sabor de alecrim - o som também exala notas - como não notar então o pensar liquefeito em palavras súditas do sentimento imanente, no verso que vestes. Nada mais que admirável.
Abraços

luís filipe pereira disse...

A todos - e sempre com renovado entusiasmo - agradeço os ecos tão generosos e enobrecedores que têm deixado a este poema: destas partilhas é feita a luz deste sol que convoca às intertextualidades.
:::::::::::::
Meu agradecimento à estimada escritora Teré Tavares que, do outro lado do Atlântico, acompanha e insufla ânimo à minha incondicional necessidade de escrever.
grato,
filipe

Anónimo disse...

Só hoje li, senti, viajei pelo poema, já tão longamente comentado.
Por isss o e só por isso limito-me a dizer: esplêndido Luís Filipe.

Consegue "espantar-me" sempre. (Heidegger)

Salica

luís filipe pereira disse...

Professora Doutora Isabel Clemente, Querida Amiga, o poema aguardava-a, a voz que nele vibra em surdina é sempre apelo à sua voz que lhe "alonga o som".
grato, a amizade inteira
filipe

Anónimo disse...

Pousei com o sujeito poético, profundamente sonoro, deste Poema (brilhante) a cabeça, o corpo, sobre o som e encontrei-me numa viagem ao interior abissal de nós mesmos.
Obrigado.
Arlindo D.

Anónimo disse...

Um poema Magnífico.
Parabéns!
J. M. Breyner

Anónimo disse...

Exímio, profundo, intenso: versos de raríssima qualidade poética.
S. Aleixo

. intemporal . disse...

.

. bel.íssimo . e sublime .

. do grito em surdina . aqui onde os dias inaudíveis são de sentido ascendente .

. crente .

. um bom fim de semana, Luís .

. um abraço .

.

. paulo .

.

Anónimo disse...

Chegarão sempre tarde os que tardarem na evidência de que existe um Grande Poeta por dentro deste, dos vários poemas.
Fascinante.

A. Seixo

Anónimo disse...

em sentido kantiano é de facto a melhor palavra para este poema:Sublime.
a ressonância shoppenhauriana, a reinvenção da dor que cerca as "mães do ser" (nietzsche) na parturação sonora do trágico.
«admirável mundo novo»: a sua poesia!
M. tamen

Anónimo disse...

Neste poema tão audível é a magnitude - também sísmica pela frescura do novo que traz dentro - desta Poesia.
Victor V. Faria

Anónimo disse...

Como ressoa vibrátil e intenso, numa poesia suprema, o "altissonante abandono".

M.Queirós

luís filipe pereira disse...

Muito vos agradeço a todos os ecos afectivos e hermenêuticos que alongam, de facto e muito, o som deste poema.
grato,
filipe

JOSÉ RIBEIRO MARTO disse...

Luís Filipe Pereira, muito obrigado pela passagem e leitura do meu poema!
Aqui vi encontrar boa poesia , passarei mais vezes
cordialmente!
_________ JRMARTO

Anónimo disse...

Excepcional poema, exímia captação das linhas sonoras e existenciais da composição aublime de Shubert.
parabéns.
J. Pacheco

Licínia Quitério disse...

A agradecer a sua visita e amáveis palavras no meu blog. É com muito agrado que tomo conhecimento da sua excelente poesia.

Cumprimentos.

Anónimo disse...

Querido Luis Filipe,
Querido Mestre,


Tenho estado fora sem acesso à Net.
Quando regresso encontro tanta, tanta, poesia!
Por onde começar?

Cá dentro, deixo uma lágrima
morrer-me.
Nos dedos tão audível é o marulho
duro da vida, do vento: altissonante
abandono.
Nenhuma lágrima.
Nenhum passo teu,
porque nenhuma estalactite
a cair-me nos pés,
porque frio fruto nenhum
a anunciar-me que chegaste.


Faz, hoje, 15 anos anos que partiste.
Deixo uma lágrima morrer-me.
Nos dedos ficou audível o marulho duro da vida,
Nenhuma lágrima!
Nenhum passo teu a cair-me nos pés!
Nenhum fruto a anunciar-me que chegaste!

Obrigada LF,

Pela lágrima que deixaste cair na minha mão.

Afectuosamente,
Sani

luís filipe pereira disse...

Pela intensa e enobrecedora intertextualidade que têm dedicado a este meu poema, deixo-vos um obrigado maior.
..................
à estimada escritora Maria Saturnino, à querida amiga Sani, deixo, enternecido, um obrigado genuíno e expresso o muito ânimo que é para mim de cada vez que as suas palavras visitam os meus textos.............partilho uma citação de L. Tolstoi na sua obra-prima A morte de Ivan Ilitch:
"Piotr saiu. Ao ficar sozinho, Ivan Ilitch começou a gemer, mais de melancolia do que de dor, por horrível que esta fosse. «Sempre e para sempre a mesma coisa, sempre estes dias e estas noites intermináveis. Se ao menos isso acontecesse mais depressa. Mais depressa o quê?A morte, as trevas. Não, não. Tudo menos a morte!»"
grato,
filipe

Anónimo disse...

Assombroso Poema com Schubert dentro.
L. p. mexia

Mel de Carvalho disse...

"Até às entranhas entardeço."

Luís,o tempo é uma "partitura suspensa" (nome de um poema meu, inédito...) que se queda a ouvir o ritmo pulsar em cada nota-silaba deste seu poema. E se comove.
Como eu, perante o que me toca...
grata por este momento. Belíssimo.

Um abraço saudoso e fraterno
Mel

Anónimo disse...

Captação ímpar do espírito da música de Schubert, da "Viagem de Inverno" a que o poema nos leva numa depuração intensíssima e... magistral.
parabéns.
Magnífico instante de poesia com profundíssima música dentro.
M.gusmão

Ana Guimarães disse...

Confessadamente impressionada com o seu perfil, com o seu blog: parabéns! Adoro sua (nossa) terra, estive lá em 2002 e escrevi um texto sobre, se quiser ler, está lá no meu blog, O Gozo da Letra.
Abraços

luís filipe pereira disse...

A todos, de novo (e como se fora a primeira vez...) agradeço a vossa disponibilidade para acompanharem, de forma afectiva e exegética, este "viajante de verão".
grato.
filipe

Anónimo disse...

Caro Professor,

A minha professora dra. Maria Saturnino deu-me a ler alguns dos seus poemas.
Gostei muito e fiquei comovida com alguns.
A Viagem de Inverno tocou-me particularmente.
Gostaria de ser convidada para o lançamento do seu próximo livro, pois já soube que a Tela do Mundo foi um momento de grande beleza.
Com admiração
Vitorina

mariis capela disse...

De volta e este blog! é um prazer ler o que escreve!