quarta-feira, 30 de abril de 2008

Fragmento de um exercício de zoografeia

ab inicio:

o ovo. no início era o canto verbal dos pássaros. couraças leves de longas cotovias. os pássaros e a pele pernoitavam em uníssono. do canto desnudo precipitaram-se calcárias praias. algas e guelras. pálpebras e peixes. peixes que eram falésias fluviais construindo o corpo de frestas dos corais. devagar adormeciam nos dias os libérrimos cavalos. as crinas ao sol. o trote da sede. cavalos de vento no lugar dos lábios. a gazela dos instantes inchavam nos olhos de gelo dos tigres tardios. cinturas de cio. gatos brancos de pierre bonnard juntavam-se ao jogo e ao grito. o ciclorama da noite acrescentava os galos.

intermezzo:

açougues de assombro até à amestrada náusea: o circo. o elefante e a memória do início bocejam nas jaulas. os papagaios duplicam vozes de palhaços duplicados nas gaiolas. ad infinitum das varandas. aprumam-se os ardilosos pavões das prisões. a pele sangra. o bestiário à beira do abismo. o inventário da caça. a cal das ossadas de sombra: o sujeito e o objecto.

luís filipe pereira

sexta-feira, 25 de abril de 2008

entra. senta-te sobre o lume dos livros (sobre um quadro de Menez/fragmento)

entra. regressas da noite das portas apagadas.

entra.

franqueia as franjas do crepúsculo faminto.entra.

regressa à resina reluzente nas lombadas. como escama. como estrela.

sentes a fragrância a florir nas palavras?

então entra.

navega no navio silábico dos livros sonolentos escritos em segredo. entra nos insones segredos dos livros ainda não livros. dos livros lavados no lume do esquecimento.

entra e espreita as frases em flor que já não podes colher.

adormece.

empurra as portas com os dedos do sono percorrendo os nomes devagar. despe-te da voz que pudesse pronunciá-los. senta-te à beira da boca ao rés da resina. senta-te à beira das labaredas dos livros aquecendo-te as ancas como lânguidos anjos.

entra. afasta as portas e pernoita nas planícies do abandono.

entra e deixa que te leiam os livros. entra e despe devagar os lábios dos livros.

pernoita lá dentro. como os pássaros. entra.

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luís filipe pereira

terça-feira, 22 de abril de 2008

sótãos de salutar solidão (fragmento que dedico a Gisela Ramos Rosa)

"E todos os espaços das nossas solidões passadas, os espaços em que sofremos a solidão, desfrutamos a solidão, desejamos a solidão, comprometemos a solidão, são indeléveis em nós. E é precisamente o ser que não deseja apagá-los. Sabe por instinto que esses espaços da sua solidão são constitutivos. Mesmo quando eles estão para sempre riscados do presente, doravante estranhos a todas as promessas do futuro, mesmo quando não se tem mais o sótão, mesmo quando se perdeu a mansarda, ficará para sempre o facto de que se amou um sótão, de que se viveu numa mansarda. A eles voltamos nos sonhos nocturnos. Esses redutos têm valor de concha." Bachelard, Poética so Espaço..........................................................................

sótãos. estranhos e mágicos recessos de epifanias. alpendres invertidos soerguendo-se na surda música da respiração. um álbum esquecido torna-se vivo. o pó que esvoaça das gavetas subterrâneas late em júbililo quando o percorrem os dedos aracnídeos e nele riscam revoadas de arabescos. linhas. mapas do corpo. espumas de conchas. sótão. ermo coração da casa arfando nos gestos que escutam um texto desconhecido. sótãos para experimentar o infinito num mínimo acto de melancolia. sótãos de aventura quando a casa e o mundo adormecem como um barco à deriva numa consentida espera das vagas ciciando o eu do eu do eu na lucidez de um espaço umbilical que amanhece nos orifícios da noite. da pele. da tela em branco. sótãos-cais. sotãos-centros em que realmente nasço na luz da comunicação para além da comunicação humana. comunico com as traves. com os ninhos sonhados. com as conchas folheadas no sortilégio de um poema a escrever-se sobre os degraus dos meus joelhos. sótãos nos confins do enigma onde ecoam as notas da infância de um piano ausente-presente. tocando em surdina notas de serenidade colhidas nas linhas infinitesimais de um lugar mínimo tornando-se mais lugar do que todos os lugares. sótãos-mundos. sótãos que são exímios sítios da lonjura de mim. atraídos por um traço maior. um verso mais iluminado do que o frio lóbulo de uma lâmpada. sótãos-olhos rolando para a memória do desconhecido. para os olhos das conchas entrabertas. para os arquipélagos da intimidade que são o lugar imóvel do vaivém da tristeza. mas onde a seiva do ser alastrando sótão adentro permanece em nós aprumando-nos as asas. as imagens não decepadas que são promessas de regresso ao eu do eu do eu. que retorna ao soalho flutuante como casco nu embalando a partitura das muitas vozes da nossa voz saboreando o medo no abrigo silente dos sótãos-fronteiras. dos sótãos-passagens. conchas labiando dentro de conchas. corais que proliferam no único lugar de solidão onde é impossível estarmos sós. sótãos-respiração. sótãos que nos respiram quando fechamos os olhos e prometemos regressar ao nosso lugar unitivo........................................luís filipe pereira

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Eco de leitura. do (excelente) livro de Rui Nunes, Ofício de Vésperas, Relógio D'Água, 2007 (fragmento)

Ofício de Vésperas: ofício de escrever o halo de lugares. lugares do abandono e da estranheza. lugares dos avessos da criação: lugares de vésperas e das vésperas. da inclemente iminência da queda. da perda. da morte futura no presente dos mortos devolvendo a cegueira ao nosso olhar. lugares sem deus ou lugares da sombra de deus no limiar do seu nome inomeável. lugares do remanescente. dos recessos do resto. o que (nos) resta? sermos "guardiães do abandono". lugares do enigma entre a inconfidência dos segredos e dos destroços. lugares frequentados pelo olhar além da sede irradiando desde a casa (do livro) como eminente/iminente "lugar do esquecimento". lugares incicatrizáveis e tatuados de nódoas (negras/a negro), aí "onde a morte recomeça". lugares que leio junto à evocação do ler/ver o quadro de van gogh Seara com Corvos onde o caminho do campo (heidegger) leva a nenhures. caminho vingativamente debicado pelas desorientadas e vespertinas asas dos corvos retalhando a muda seara. tavez "com uma fome cheia de rancor". caminhos/topoi que se transportam ao longo das esquinas corroídas da escrita para as orlas do exílio. linhas de fuga ou "placas toponómicas num país estrangeiro". talvez seja na figura do eremitério no ávido árido deserto dos nomes e dos rostos que se espacializam as margens de estranheza do livro a escrever. da palavra a pronunciar. e para sempre impronunciável. palavra-cardo. palavra-sede-sede sem oásis prometidos ou consolos terminais. sem fontanários paliativos. sobra a inevitabilidade de pensá-lo com as mãos e as frieiras estiolando os dedos e sobra na circularidade invertida do fim-princípio a impossíbilidade de senti-lo: "como Deus o era para Kant". lugares interminavelmente vésperas do incansável "trabalho da ruína". lugares cercados. onde "a luz é um cerco" que clareia apenas a mutilação dos contornos e a inevitabilidade dos despojos. lugares da condenação à errância de nós. de um nós anónimo ou pelotão de "emigrantes clandestinos" nas vésperas do fuzilamento. lugares de encontro do fundo e irreparável desencontro. "simples encontro de uma dor com uma dor". lugares de fronteiras. de limbo. de hiato. de desbussolados caminhos ao longo dos quais se percorre o convulsivo esquecimento. porque "a memória é um tempo desavindo". lugares estilhaçados no estilhaço de desenhos rasurados pelas vésperas do medo. porque "é tão breve a pausa do sentido"...................................................luís filipe pereira...........................................................................................................................................................................

sexta-feira, 4 de abril de 2008

"Para crescer, o corpo tem de ser uma mala de viagem" (in Capricho 43 de Carlos Vaz)


o título está inserto no fantástico - criadoramente llansoliano - romance capricho 43 de carlos vaz. o corpo cresce fazendo e desfazendo os instrumentos que animam a demanda de linhas de errância. cresce com os músculos textuais que o vão robustecendo contra a impostura do medo e a tirania dos príncipes imobilizados sob o fardo cego do poder. os príncipes não viajam. a mala está sempre meio cheia meio vazia dos racionais estratagemas e ardis insidiosos que castram e desmantelam o sonho. os príncipes não crescem porque não têm medo ocupados que sempre estão em provocarem o medo para prepetuarem as águas separadas dos que detêm as chaves artificiais do texto em relação aos que ousam a viagem com a chave cega que franqueia os abismos e a insânia e não cessam de crescer. não cessam de arrumar a mala da trajectória sem meta definida. não cessam de procurar a parte louca do mundo que é a restante metade que dá intensidade textual ao crescimento. crescem porque acreditam que as histórias de contar da Mãe são o forro figural da mala de viagem. crescem porque aprendem a vencer o medo e não temem o incessante esvaziamento da mala para lhes ser mais leve a viagem. e não temem os monstros que a razão goyesca sonha. e não temem vagabundar à deriva noLetes. e agarram-se aos lençóis do afecto para a navegação do tanque de cimento que há-de velejar nas águas do texto que arquitectam as ilhas. as singularidades de sermos no espaço-tempo intersticial das metades e dos hiatos. ilhas de temor. ilhas deslumbradas. ilhas de lava textual. ilhas de memória. de terra firme. o homem-que-separa-as-águas há-de osmosear a gravidade de newton e a contragravidade da arte. separa as águas para unir no caudal da monstruosidade figural o leitor e o escritor. o legente e o escrevente. ilhas encontradas sob a protecção da corda da Mãe comunial. que estende as roupas textuais de ambos para que cresçam os corpos sempre que partem protegidos pelos nós da afectividade. levar este livro na mala de viagem é lavar a roupa suja e gasta do intranscendente quotidiano. é levar nos dedos. na pele. no córtex o prisma das cores refractando-se como corda estendida sobre o abismo do texto. é levar o tanque de cimento como o barco que nos cabe no devir da infantilidade rumo à maturidade e vice-versa como unidas metades ao longo da corda que vai de um lado ao outro. de ilha em ilha. de novelo em novelo.de mala em mala. de viagem em viagem. eis o crescer do corpo.