domingo, 24 de fevereiro de 2008

A incerteza dos caminhos, com Paulo Nozolino (fragmento)

quando os passos voam os caminhos têm a curvatura das asas incertas. onde um pé para encaixar-se no vazio do molde que o insinua? os pés voaram para além das estreitas ruas e deles resta a nostalgia silente de uma raiz negra. a memória dos trilhos corrói meticulosamente a linha de fuga do presente. nos sapatos:nada. nos sapatos o destroço da partida para lá das varandas derradeiras. nos sapatos a lama dos vestígios como agulhas do abandono. que carne hiante vem calçá-los ainda? nenhum passo a estrugir, nenhum passo a bramir no interior das esquinas como retalhos de eternidade. adivinho os pés doridos na gótica rosácea do voo que delonga nas paralelas da névoa. na linha de terra aérea. é tão estreita a perspectiva de alcatrão.é tão nua a ausência exposta no interior dos sapatos anódinos como invertidos gansos de névoa. a intimidade expõe-se até aos ossos, até à cartilagem do tornozelo. até o tendão de aquiles se exibe para deslizar no certo vazio dos caminhos incertos. se alguém decidir voltar aos negros hortos da cidade, como aos poços sem fundo, terá um sapato à sua espera para embrulhar a verniz a sua queda? o bico do sapato rasga o cenário da branca memória até à mais fulminante degradação. cada sapato é a ferida que nos cabe? é a cicatriz que a incerteza dos caminhos nos carimbou? os sapatos são as ilhas que servem aos recifes de treva da nossa indesculpável incomunicabilidade. os caminhos caminham-nos. os caminhos levam-nos rumo às praças desertas da alma até aos cumes da nossa pele neles rebocada. até à insânia. até à medula da revoada das sombras selando a mudez da espera ao rés das trajectórias hesitantes. as que nos traçam como flechas do certo insurrecto. incerteza dos caminhos. sapatos suspensos: eis a prova (ou o negativo fotográfico que somos na sede táctil da urbano umbral da espera).......................luís filipe pereira

Sem comentários: