sábado, 12 de julho de 2008

O VAZIO: Sempre o mesmo sopro em tantos sopros diversos (fotografia de Ricardo Tavares)

ele dava um passo para ele. não recuou. como se amasse as mudas cicatrizes do abrigo. a sombra no som da luz sempre mais lenta é a soleira do míscaro chumbo.
às vezes a escuridão deixa morrer o corpo com um gesto inacabado.
oscilante na sua ilesa incompletude entra. mas o quarto interpõe-se entre os seus passos como uma branca palavra suspensa num brilho de boca. primeiro o pé como um signo instável, a perna depois e depois o tronco. reconhece o lugar. o vazio sobre o vazio.
olha em torno desconhecendo para onde se voltar.
é talvez o seu quarto. é talvez o exílio de um deserto extreme como uma acolhedora linha de anca. é uma esquírola de abrigo. é um negro derrame na intermitência dos passos ante um degrau destroçado.
estende-se o vazio como um osso horizontal. como um reconhecimento construindo-se num rectângulo estagnado.
sorri-lhe. na cega memória que tem dele.
sabe que se gritasse ouviria o eco de um nome único. o seu nome soletando-se na silente e sequiosa contagem dos passos.
está na viscosa meia-noite do vazio e agora o quarto tem a amplitude do quebrado arco da sua fronte. poderia mesmo esgoli-lo caso soubesse entender-lhe o sentido. mas a melancolia do silêncio sai, num sopro de sopros, da crisálida de âmbar dos seus olhos, afagando as declinações do abrigo que o texto percorre como vagarosamente um cão sem dono.
luís filipe pereira

13 comentários:

Anónimo disse...

Intenso jogo de chiaroscuro. O vazio a pedir os passos que o reconhecem sem jamais o anularem. O texto tem a sinuosidade de uma hesitação consumada. oscilantes diante do vazio interior e exterior. Um vazio de antevésperas.Maior que o espaço. Maior que o tempo. Mais fundo do que o olhar que o divisa.Parabéns por este caminho literário que ousa o recôndito de um vazio ontológico tão diverso do nada, do niilismo paralisante. Obrigado Filipe por um, mais um, texto soberbo.
A-Mendes

Anónimo disse...

(...) e o negro pode transformar-se na revelação do branco, isto é, na reconciliação com o mundo - com a multiplicidade das suas paisagens e objectos, com os seus sinais de vida:

Progridem os silêncios
- tudo é oco ou opaco?
a pressão do tempo cai sobre a nuca negra
o mundo da língua é o murmúrio de um barco
e um ritmo subsiste um perfume de pedra
uma laranja um copo um fragmento a folha
a gravidade cálida nos elementos livres o negro transmite o branco a intensidade silenciosa
(Ramos Rosa, Declives, p. 24)

in João Rui de Sousa, António Ramos Rosa ou o diálogo com o universo, p. 75


Gisela R.Rosa

luís filipe pereira disse...

Obrigado Gisela Ramos Rosa, pelos sopros que trouxe no seu sopro, por trazer a sonoridade da brisa da diversidade conciliada/intertextualizada.Pela intuição hermenêutica de João Rui de Sousa: a escuridão como órgão de reconciliação. Pela profunda "intensidade silenciosa" que respira entre os poros, em declive, dessa obra de António Ramos Rosa (Declives) que tanto me fascina, especialmente pela experiência poética e ontológica da rarefacção, da erosão luminosa confinando com versos quase nominais.Uma obra que sempre leio à luz das experiências estéticas Satori, do esplendor do vazio, receptáculo e possibilidade da plenitude, uma obra que sempre leio como se entrasse nos relevos pictóricos da vacuidade de A. tápies. Obrigado.
Filipe

Anónimo disse...

DE facto, os abrigos, mesmo os mais reconhecíveis pelo nosso corpo - o quarto -, serão tanto mais reconhecidos quanto os experimentarmos com a subtileza do estranhamento: nas áleas do vazio estremecem os passos e a duração dos pomares. É lindo, perfeito, este texto.

MóniKa disse...

A solidão do silêncio.

Anónimo disse...

Parece-me muito bonita a imagem/fotografia assim como gosto muito do que o professor transmite aos outros nos seus textos.
Ricardo Esteves

Anónimo disse...

Porque a literatura se faz e enriquece com a magia diversa destes sopros diversos, parabéns (e obrigado, Filipe).
J. Morais

Anónimo disse...

Um texto excelente. Uma experiência-texto. Ficam estes genuínos parabéns pelo fascínio que me provocam os seus textos.
A-Amaral

Anónimo disse...

adorei este sopro de um grande escritor.Parabéns.

Anónimo disse...

é o vazio que consome e enlouquece. Não o silêncio. Não a escuridão. Talvez o reconhecimento da ausência. Desde que um sopro-texto-teu me acompanhe não estarei só e jamais o vazio se assome.
Rui

Anónimo disse...

No vazio de espaço, ele encontra-se. Recorda as cicatrizes. Entra e enfrenta o vazio do quarto. Recorda-se. Sorri. Sente que poderia escutar o inacabado e o eco do seu nome. Perde-se na melancolia dos sopros do silêncio.
Como um "cão sem dono", ele procura alcançar o abrigo e/ou o equilíbrio.
Encontros... Como se uma amnésia se tratasse.

Excelente! Agradeço estes momentos de leitura.
DiteApolinario

luís filipe pereira disse...

D. Apolinário: eu é que çhe agradeço a intensidade, a generosa clarividência da sua linha de leitura- "como se de uma amnésia se tratasse" ou a ânsia de uma memória branca para que se torne possível o reencontro do espaço somoro dos (nossos) passos. Muito obrigado.
luís filipe pereira

mar disse...

haverá sempre o vazio duradouro, inquietante, a roubar algumas gotas de sangue às veias, haverá sempre o buraco negro e o corpo a cair por ele abaixo. a atmosfera dos dias é curta como a silva roçada na tapada, dói até, a morte prematura dos gestos num aceno último às coisas. e a escuridão de longe cobre a pele, tinge o gosto da saliva e pernoita nos cantos mais inquietos de nós.
depois é só deixar apodrecer em vazio e solidão, com o tempo adquire-se aquela maturidade, tudo se transforma em nostalgia.

um beijo
deste
mar.