sexta-feira, 4 de julho de 2008

A SOMBRA NO SOALHO (fotografia de Francesca woodman, 1976)

este é o meu esboço. abriu a permanência da pele. permanecer. girou a imóvel grafia do gesto num lateral alvoroço de silêncio irreparável. em redor das mãos vejo outras mãos roendo-me como muros. sentada desenhou o corpo que fazendo-se rarefazendo-se nas tábuas que desobedecem às têmporas. sento-me sinto-me. o corpo caminhava colado ao chão como um filme mudo. revolveu a poalha da recordação.depois, a luz patriarcal ao rés das pernas. quem vive no soalho além de mim? cada tábua era a única verdadeira mão que voraz se estendia. lentamente lançou outros ângulos para lhe cercarem o corpo. cegamente deixo-me deslizar para dentro. um a um, os ângulos feriram o soalho até que de joelhos o espaço descruzasse os invisíveis pulsos. rodou a linha de uma dúvida. leu no cavalete do corpo a mudez. mudou as frestas portáteis sob os pés. percorro-me. com a suavidade da dúvida irresolúvel como um traço iminente entre os dedos desferiu a dor da semelhança. rasurou-a contemplando-a na matéria da madeira. estou aqui estou ali nesta hora de desmando neste diferido desacerto. aguadamente sobrevoou as pegadas do assombro para mergulhar numa órbita imaginária sob o enclave da sombra. na seda especular do soalho cravou o corpo encenado por entre as malhas do medo como o véu de uma voz tábua a tábua volteando. em imagens falo-me em micro-écrans escuto-me. decidiu-se por um ponto de partida: traçar nas tábuas um repetível resíduo. permanecer. fechou na pele a pele. no soalho desenhou o provisório som da permanência.
luís filipe pereira

13 comentários:

Anónimo disse...

Que saudades L. Filipe de um texto - e que texto - seu. Este soalho imagístico onde um corpo se encontra no que o apruma: um chão para permanecer. É fabuloso Filipe.
Obrigado por mais esta intertextualidade, sempre surpreendente, original e originária. tão rente à pele!
J. Guimarães

Anónimo disse...

Como se as tábuas de um soalho
possam dizer mais com a sombra da pele
como se nele fosse possível imaginar e fixar o corpo efémero.
Obrigada Luís Filipe, uma associação imagem/texto magnífica.
GRR

Anónimo disse...

Parabéns- tocante, denso e exacto, cruas as vozes que se tocam e se trocam como num espelho. O filme mudo das nossas vidas, urge encontrá-lo rebobinando a sucessão dos dias- pode muito bem- como exemplarmente Acontece no seu texto - nas tábuas de um soalho.
C-Coelho

Anónimo disse...

Texto, textos. mistura-se o corpo nas tábuas. entram as palavras pelas palavras. o texto a si próprio se invade, penetrando-se se transfigura.
magnífico.

Anónimo disse...

Admirável- Não connhecia este blogue - blogue?, este lugar da literatura, de grande literatura, de interartes comandadas pelo fôlego fascinante da sua escrita - é fabuloso: Homenagem linda ao POETA António Ramos Rosa. Homenagem viva à arte de escrever. Divulgá-lo-ei, o seu blogue, pois é imprescindível. Obrigado.
Visitante fascinado.

Anónimo disse...

POEMA PARA O FILIPE

Queria cair e morrer num sítio qualquer
Para que o cálcio dos meus ossos pintasse o mundo de branco
Para que o vazio da minha alma ensurdecesse o horizonte

Cair para que o vento assombrasse o defunto
Uivando como um cão de sortilégio
Para que revoltado espalhasse a solidão dos tempos
A infértil vontade dos dias
A ambição que outrora foi viver
E que agora apodrece entre as ervas daninhas

Victor Banza
06 de Julho de 2008

luís filipe pereira disse...

Obrigado Víctor. Um poema teu é um privilégio inenarrável.Um poema pintado com a disfora de um branco que fere até ao osso onde a medula da morte de que irrompem as vértebras da letargia. Obrigado pela partilha que torna tão mais rico tão mais rico este espaço, a que só a partilha dá sentido, das minhas abertas intertextualidades. voltarei sempre ao teu poema para recuperar a anima que me impulsiona a abrir esta janela de cada vez que desejo comungar com os visitantes, nesta janela comunial, o ramos-rosiano Grito Claro:"Estou vivo e escrevo sol".Filipe.

Anónimo disse...

Amanhecemos cheios de sede como se viéssemos de um outro
|hemisfério
Daniel Faria, Poesia, p.131

Anónimo disse...

Muito bom o texto. a ligação em ekphrasis com a fotografia (belíssima) é excelente. Mais textos, por favor. Que grande qualidade e densidade literárias.
C.F. Alves

Anónimo disse...

Donner et Partager!

J’aime ton calme que rien ne bouscule
Et le vent que taquine tes cheveux
J’aime tes mains que me rassurent
Quand je me perds dans tes yeux !

Et ta voix qui me murmure
- Douce sortilège da la pluie! -
J’aime quand tu reviens ravi
Appuyer ta tête sur mes genoux !

J’aime te donner et partager
Émotions, sentiments et souvenirs
Et le murmure de ton silence écouter !

Je garde tant de rêves dans ton sourire
Même quand une savante certitude
S’accroche à moi la solitude !

Maria Saturnino
Horta da Torre, 30.X.03 (Horta da Torre é o meu nicho em Tavira)

luís filipe pereira disse...

Maria Saturnino. Obrigado pela alegria da partilha, pela generosidade de intertextualizar-se nesta mélange póiética.
Filipe

Anónimo disse...

excelentes planos encaixados: imagem/ texto, narrador/personagem,
fechamentos de huis clos e aberturas à interrogação essencial: eu aqui: onde? quando? talvez responda uma sombra, um chão de permanência do questionamento. Grande texto!.
L. campos

Anónimo disse...

"A Sombra no Soalho" que insiste e persegue as mãos, as têmporas. O esboço do corpo: "sento sinto-me/ escuto-me/percorro-me":
-Quem vive no soalho para além de mim?-
É o som provisório da permanência de pele. A sua memória e o seu registo distribuídos e desenhados em cada tábua.
E "fechou na pele a pele".

Texto sensorial. Brilhante!
Um desafio à compreensão. Obrigada!
DiteApolinario