terça-feira, 22 de julho de 2008

Talvez Seja Silêncio Só (Foto de Paulo Nozolino)


sobre a pedra deitada sob a cinza das nuvens. talvez silêncio só assome aos teus ouvidos.
talvez não tenhas desistido de levantar um braço até ao bramido da estreante estrela que tarda. apenas recuperas no rumor da pedra o calor do teu corpo cansado da espera do que tarda sempre. perdeste o navio e as ilhas emplumadas. detrás dos passos rasuraste as pegadas do caminho que em teu coração talvez anunciasse o mar. aproximas a pupila da longínqua noite obscura como se escutasses com têmporas de terra a erupção da lava também tardia.
só a pedra te afaga e afasta o pranto quando do teu peito há tanto se evadiu uma ave exangue de sangue e de luz. só a pedra te pacifica e é fria como um acorde de sol incomensurável e que invariavelmente tarda. sobre a pedra já nada te acontece de mal e da sombra e da cinza agora podes tecer a lâmpada de um lábio que levante o viço de um abrigo sem fim.
sabes-te nulo até aos ossos embora te revejas noutra pele que teces na partitura de reticências traçadas no raso chão sob uma colmeia negra de nuvens.
às vezes para lá dos céus e dos chumbos. para lá dos caminhos e das clavículas das esperas uma paz de pedra embala-nos a esmo e a solidão do universo sabe a uma doce superfície.
talvez te encontres agora a assobiar contra a agonia da terra à flor do teu corpo liberto dos caminhos, companheiro das nuvens e do ocaso das cinzas. talvez a estrepitosa espada do silêncio sele no teu assobio um timbre que seja mais tarde a simples restauração da luz.
estás sentado sobre a pedra talvez a mascar com as gengivas da sombra a mínima submissão à compassiva chegada de um esquife estrelar. talvez tarde. só a pedra será a balança de pesar os barcos das tuas preliminares partidas.
só a pedra que agora te agasalha e escurece poderá ser a voz do meu espanto e a berma translúcida do caminho a dar ao baldio deste texto.
luís filipe pereira

12 comentários:

Anónimo disse...

como um abrigo-agasalho as palavras aclaram o silêncio como um sopro que enche o vazio e liberta da ausência. rui

Anónimo disse...

outra pausa de extrema profundidade conotativa e imagética. Mais um texto fabuloso a deixar entrever que algum dia estes textos do seu blog merecerão, e já merecem, uma publicação, assim os editores estivessem mais vigilantes às vozes que são mais-valia para a literatura.
M. Martins

MóniKa disse...

Apetece-me dizer quando o homem se confunde com a pedra.

luís filipe pereira disse...

Mónika, muito obrigado por mais esta - e sempre insufladora de alento - visita ao blog Intertextualidades-Estou Vivo e Escrevo Sol. A mistura do homem com a pedra: obrigado pelo ângulo de decifração do meu texto.Na verdade, fascinam-me os enlaces, os quiasmos, as reversibilidades (o meu cromossoma merleau-pontiano), a que gosto de sobrepor o que Giles Deleuze chama "devires". Sob o ângulo-pista da decifração da Mónika estar-se-ia, neste texto, face a um devir pedra do homem. Obrigado pela linha fecunda, pois tentei, em certo sentido, um efeito de mineralização do humano, porém deixando intacta uma vereda de abertura ou de des-mineralização, pelo que, como o são todos os efeitos, o efeito (se) produzido é aberto e, como tal, funciona como uma captura intervalar (imagem-texto), pausa em mutação, pausa em rotação. De novo: obrigado Mónika.
luís filipe pereira

Anónimo disse...

Um texto sublime (em todaS as acepções, incluindo a de I. Kant).
L-C- Ferreira

Anónimo disse...

Entre a Pedra e o Céu, dentro do silêncio a que todos os que escrevem estão pacificamente condenados e a viva voz que grita em cada letra desenhada pela tua mão, no corpo não nos corre sangue, corre tinta. Silêncio ...

Um abraço
V.Banza

Anónimo disse...

Embrulhou-se diametralmente no seu fato cinzento e pôs a trela mais colorida que encontrou no armário para enganar a prisão de movimentos (e pensamentos) a que o seu corpo se votava. Olhou para trás acarinhando a esperança de vislumbrar os dias em que a liberdade não era nem mais nem menos do que sair para a rua cálida e titubeante de encontros e surpresas que sem pressa se desencontravam dos olhares menos atentos.
Mas a rua não estava lá, nem sequer a tinta dos dias estava lá, só a mistura embotada de preto e branco lhe tisnava a íris mastigada pelos dias...

um desabafo
V.

Anónimo disse...

Um texto magnífico! inspirador!Uma leitura da imagem visual com o coirpo mais subtil (pejado de imagens) da linguagem.Adoro o seu blog. Com assombro e prazer leio e releio os seus textos. Que o viço desta "janela" perdure e viva para sempre!
Eiras.

Anónimo disse...

Que irrompam mais e mais "preliminares partidas": acompanhá-lo-ei pelo seu fulgurante
"caminho de palavras" (ARR).

Anónimo disse...

UM grande Fotógrafo. Um grande Escritor. O texto é fabuloso.
M- Seixas

Anónimo disse...

Uma pedra. Um homem, olha o horizonte. No céu, o cinzento das nuvens circundam o mar, o homem e a pedra. Unem-se. No silêncio, escutam-se.
Nesta imagem e paisagem, o homem aguarda sentado na pedra que o acolhe, protege e embala na "paz de pedra": a compreensão, "talvez tarde. só a pedra será a balança de pesar os barcos das tuas preliminares partidas."
A pedra, como personagem viva e cooperante.
E esperam a estrela.

Sublime! Obrigada.
DiteApolinario

mar disse...

talvez seja silêncio só

páro, talvez não seja nada, talvez sejam as tuas palavras encostadas ao nascer prematuro da noite ou o dia a abortar uma cauda de existência qualquer. talvez eu não tenha ainda reparado que a tarde cai, todos os dias e o silêncio dos teus textos me agite a descoberta de mim, real aparição do que sou. ainda assim concluo uma paragem respiratória, cardiovascular, qualquer coisa que interrompe a vida inteira antes de ter um avc com conceitos comprometedores, como este silêncio a ruir, a moer a carne até aos ossos.
páro.