quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

RECENSÃO A TELA DO MUNDO pela escritora/poeta brasileira Paula Cajaty

http://www.paulacajaty.com/

A tela de Lippe, atravessando um oceano de poesia-
Pereira, Luís Filipe. A tela do mundo. Capa: pintura de Laura Cesana. Portugal: DG Edições, 2008.
Uma obra de arte cinzelada em palavras. Assim é 'A tela do mundo' de Luís Filipe Pereira, poeta português de currículo invejável e rara sensibilidade poética, um poeta d'além-mar cuja obra tive o privilégio de conhecer.
O livro nasce de três axiomas: a força vivífica que se reflete da mesma origem, mas de modos diferenciados nas obras plásticas e literárias, abraçando a filosofia de Maurice Merleau-Ponty e Martin Heidegger, frente ao argumento poético de Antonio Ramos Rosa. Aliás, é em seu blog que Lippe ecoa o poeta português e lhe presta tributo, evocando em seu subtítulo um dos livros da obra ramos-rosiana: 'Estou vivo e escrevo sol'.
No entanto, nada disso traz pedantismos, jargões ou linguagens específicas e cifradas, mas apenas premissas teóricas sobre as quais repousa sua obra, e que levam os versos de Filipe a profundezas inimagináveis.
Lippe mistura em sua paleta, entre outros tons e sons, Paul Cézanne, Garcia Lorca, Juan Miró, Júlio Resende, Paul Klee, Magritte, Rothko, Antonio Ramos Rosa, Marc Chagall, Van Gogh, Frida Kahlo, Franz Marc e Edward Hopper, num desfilar de cores e intensidades.
Em sua tela é possível decifrar o motivo pelo qual a poesia se faz gênero para poucos. É que são realmente ínfimos aqueles dispostos e capazes de um mergulho tão fundo na existência - poucos são os eleitos para um voo tão alto ou têm conteúdo, força e conhecimento suficientes para gravar e perenizar o mundo, essa passagem.
O poeta parte do 'instante sempre de novo inacabado' e na sua 'paleta do tempo', inicia do vermelho e segue entre diversas imagens e cores para findar no próprio começo. Seu poema está 'no espaço não-capturado pela razão' e se colore de negro e branco para dizer, sempre e novamente, na 'lenta lentidão/de tudo o que não diz'.
Luís está no pólo oposto da ausência de sentido que sinaliza a arte poética pós-contemporânea, mas também não se restringe a apreender e retratar o que se vê. Luís busca outra ausência, procura o que não se vê, o que não há, o que é anterior à existência e à própria luz, e encontra a força das palavras e sua correspondência nos matizes de luminescência da cor. Empreende outra 'pedagogia do olhar' tal como proposto, desse lado do oceano, pelo mestre Affonso Romano em seu livro 'Desconstruir Duchamp'.
Para Lippe, as palavras são os tons e semitons de nossa própria passagem, de nosso percurso sob as infindas combinações e incidências de luz e sombra e, desta forma, numa percepção estética que caminha para além da luz, seus poemas são repletos de sentido e referências filosóficas, semióticas, metalinguísticas e artísticas. Captura-se a luz que se refrata em cor, a luz que se filtra em nós e se transforma em palavras, até que a ausência de luz desça a cortina da noite sobre o texto e se transforme em nova página em branco.
E assim como luz e sombra, vida e morte, são cíclicos binários e alternados, Luís Filipe germina, fecunda e termina sua tela do mundo com a reabertura eterna:'de novo o branco da página há de conjugar-me', 'de novo o branco da tela há-de colorir-me', 'pintura a pintura', 'estrofe a estrofe' (em 'epigrama de um começo')
Após ouvir os sons, o ritmo, a música da palavra - essa arte entretecida em negro e branco - e absorvê-la em silêncio, também eu busco a continuação, me perscruto num universo de emergências e luz, inesgotável de tinta e palavra.
Quem disse que o verso morreu?

Paula Cajaty

2 comentários:

Anónimo disse...

Pequena resenha onde as tónicas da reversibilidade e do quiasma transparecem um olhar poético tão próprio, o teu, capaz de renascer a obra e capaz de criar uma nova tela.rui

Anónimo disse...

Excelente recensão a um livro ímpar, precioso, magnífico.

H.Cadete