Maria Saturnino brindou ontem todos os que tiveram oportunidade de testemunhar o advento do seu segundo livro OS DEUSES NÃO MORAM AQUI com uma mágica sinédoque a entrelaçar margens: Algarve (Tavira) e Moçambique confluiram num delta afectuoso, senha prodigiosa para uma viagem a convocar os sentidos todos: os cheiros e os sons algarvios, as cores e os cheiros de África são-nos ofertados, de forma afectuosa, como memórias em acto, pelas narrativas desta autora.
Maria Saturnino embarca - com a sabedoria cristalina de quem se pergunta, para responder com um não incondicional e genuíno, "se seria a mesma pessoa sem os livros que li!" (p.15) -por dentro da errância, que é o emblema do fascínio pelo acto da escrita, de uma narratividade cujo tom deliberadamente coloquial toca o leitor, ao mesmo tempo que bebe da fonte imorredoura da «ficção do presente» (de um verso de Reinaldo Ferreira, cujo poema integral lemos na p. 138) e que se prende à oralidade rediviva, das mil e muitas histórias contadas à sombra do embondeiro, à sombra do tempo que, lento, lentíssimo, passa por e entre as histórias como se dobram e redobram os ramos, com a estatura do mundo, do embondeiro: erigido, aprumado, até aos confins dos céus. Em seu torno, a savana interminável, a aridez inomeável e incendiada,lugar onde o som se espraia sem encontrar ancoragem num eco, numa reverberação. Lugar onde não moram os deuses: lugar em que os deuses são sonhados ao ritmo do assombro e da coragem, lugar da falta, como o amor é lugar do desejo, lugar do que escapa à "pálida razão" (Rimbaud), porque sementeira da vida a haver, do mundo mais humanizado a construir, do mundo mais plural a conjugar.
"Às vezes olhava pensativamente para o Monte, e eu perguntava-lhe quem morava lá em cima, ao que me respondia misteriosamente baixando a voz: - Os deuses, minha filha, são os deuses! Enquanto percorrera a savana africana sem ver viva alma, só capim e micaias, pensava:
-Os deuses não moram aqui!" (p. 158): Ideia matricial (matriz do Romance por vir como prometeu a autora) deste livro e, exemplarmente, figurada na fotografia da capa do livro da autoria de Fernando Ribeiro.
Parabéns Maria Saturnino. Que belo o lugar que é o seu no panorama literário: Um lugar fraterno, profundamente humanista" (Lê-se no Prefácio da Professora Doutora Olga Iglésias), um lugar a que me permito chamar, em mimésis do seu primeiro livro, Entre Margens.
Luís Filipe Pereira
4 comentários:
Caro LFP, explora de forma tão autêntica e aliciante as suas "impressões", melhor diria que se trata de um excelente trabalho exegético, que fiquei com grande expectativa na leitura do Livro a que nos introduz. Obrigado.
J. Dias
Belíssimo texto, Filipe. Como sempre, cada escrita sua, ainda que apreciação, comentário é criatividade poética.
Como sempre as palavras pendem-nos e, com elas, seguimos.
Parabéns e à Sani.
Salica
Caro Filipe: por dentro da afectividade que revela pela autora, o modo como nos apresenta o livro destaca-se pela qualidade hermenêutica, pelo domínio fascinante da pragmática da linguagem: escrita que interpreta, que, incrivelmente, dá a ver, escrita que, seja no registo poético, narrativo, ensaístico,toca sempre o mais-que-perfeito: encanta!
Parabéns também à autora do livro que desejo poder encontrar em breve numa livraria.
M. F. Mendonça
As primeiras impressões aglutinam-se, adicionam-se à curiosidade de leitura do livro, nas palavras de convite do Luís Filipe Pereira.
"À sombra do embondeiro". Mistério... O que esta árvore nos esconde e revela, "à sombra do tempo", nas palavras da autora Maria Saturnino? Certamente, "até aos confins dos céus".
Pois é... A expectativa.
Mas no fantástico, o livro chegou às minhas mãos. Já tenho o livro, sim.
Tudo de bom à escritora Maria Saturnino, que muito nos honra com a sua presença e palavras.
Obrigada por estas preciosas "impressões".
F.Apolinário
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