quarta-feira, 11 de novembro de 2009

NOCTURNO

pintura de Gracinda Candeias: "sem título"/1990
com um compasso,
num vaivém imóvel
de lentíssimo rio,
desenho um sol
dentro da noite
que em meus dedos
anoitece,
cansada de ser noite.
aponto às constelações,
na raiz da escuridão rasurada
como réptil errante,
a agulha, o carvão.
concebo um sol,
uma máquina de luz
ou uma fieira
fragílima
de radículas:
algo que abra
a extinta boca
da lava extraviada.
com o círculo a meio
hesito.
poderia fazer recuar a agulha
avançando a lasca de carvão
para retocar a lua.

troco a hesitação pelo hábito
do sol que virá.
é o sol claro, a luz intrínseca,
a sua chama de sepultar os ossos
da noite que, vertiginosamente, desejo,
desenhando-o.
é o sol largo: lábio devasso,
minuete descompassado.
só ele apagará a ausência,
a dor que ela espanca em pleno vento.

sei que a flâmula da noite
está agora emoldurada
de uma angústia diferente:
reverbera rente ao sol
concebido a compasso
um vento mais emudecido.

só quis queimar essa ausência
nas imediações do lume,
no diâmetro livre da luz.
sei que foi em vão.

luís filipe pereira

37 comentários:

Anónimo disse...

LIndo L. Filipe Pereira. Como tanto gosta de M. G. LLansol o LFP tem, fascinantemente, o que a autora de "Um falcão no punho" chama "dom poético". Tem o dom de emocionar com a sua poesia de uma sensibilidade, plasticidade, intensidade tão, tão raras. Obrigado LFP! Ficarei por aaqui a ler e a ler, prolongando o "compasso" da leitura e a esquecer-me da ausência, porque o seu poema é presença. Quando uma Tela do Mundo II?? (Excelente a escolha do quadro de Gracinda Candeias).

Com adimiração,
Teresa S. Guido

gracinda candeias disse...

gostei muito! é espantoso sentir formas em letras o quadro adquire uma nova dimensão!

Gracinda Candeias

Anónimo disse...

"sol enganador", reconfortante mas efémero. o poema, será sempre eterno, eternamente belo. rui

Anónimo disse...

Lembra-me o filme “O sol enganador”, ainda que momentaneamente reconfortante, é um sol efémero.
Contudo, o poema, teu, será sempre eterno, eternamente belo.
R.

Anónimo disse...

Li a tua entrevista no blog Palavras Criativas.
Seja poesia, prosa, ensaio,…entrevista…, a escrita é reveladoramente, tua. Pelo seu deslumbramento e deleite, é impossível não marcar o leitor.
Por isso nunca podes parar de escrever porque já és uma referência para muitos de nós.

R.C.

luís filipe pereira disse...

Muito Obrigado pela generosidade destes vossos comentários a este meu poema "Nocturno".
Em especial, quero agradecer à artista Gracinda Candeias, cuja pintura muito admiro, a sua pronta autorização para postar no meu blog um quadro seu e o incentivo que me deu para, partindo dele, construísse o poema.
Obrigado R.: sei da sinceridade absoluta das tuas palavras e, renovadamente, agradeço-te o modo sempre generosamente vigilante como acompanhas - enriqueces, dás força para continuá-lo - este espaço de "intertextualidades", de sombras e sóis.
filipe

Anónimo disse...

Em vão jamais, em parte alguma, seria este seu poema: é tão belo, perfeito desenho do sol, sublime ideia da escrita que é compasso de abertura de mundos, de realidades.
Vou ler mais poemas seus, quero, preciso ler Poesia............ Obrigado por este momento de Leitura.

Rosa Mascarenhas da Silva

Tere Tavares disse...

O sol arderá enquanto houver olhos sequiosos de suas emanações. É dádiva constatar-lhe a luz, inextinguível.
Parabéns ao poeta e à pintora.

Anónimo disse...

Obra de arte: poesia mágica, este poema é fabuloso.
Parabéns também pela escolha da grande pintora Gracinda Candeias.

Marta Nery

Ricardo Mainieri disse...

Que ótimo ter em meu blog uma visita de além-mar.
Obrigado, Luiz Felipe, pelo gentil e consistente comentário sobre minha "carnavalização" de Fernando Pessoa.
Vejo que lidas com o imaginário, num sentido quase surrealista, onde sugeres mais do que confirmas, na boa tradição do poema de fundo filosófico e existencial.
Sou um poeta brasileiro, do extremo-sul do Brasil, numa proximidade muito grande com o Uruguai e Argentina. Moro, inclusive, numa cidade fundada por 60 casais açorianos: Porto Alegre
Em termos poéticos cultivo o minimalismo, o humor, o existencialismo e o social.
Visite-me quando quiser. Também tenho boas indicações de peotas brasileiros contemporâneos que usam a NET para divulgação.
Alguns nomes: Lau Siqueira, Claudio Daniel, Ana Maria Ramiro, Frederico Barbosa, Carpinejar, Jorge Adelar Finatto e tantos outros.

Abraços das terras do Sul.

Ricardo Mainieri

Anónimo disse...

Realmente adorei os poemas!
Nunca pensei que tinha um professor/ explicador que escreve poemas fantásticos que faz sentir na alma algo espectacular que nunca tinha visto.
Não sou uma pessoa muito interessada em poemas mas confesso que gostaria de ler um dia esses magníficos poemas!

Beijinhos
Magda Arsénio

Anónimo disse...

Uma pintura que associo a um feto. Gestação: de quadro e poema.
A noite, «cansada de ser noite».

« com um compasso/ desenho um sol »

E quando a luz do sol iluminar a imagem, que lentamente se adiciona à ondulação do poema, complementam-se.
Respiram.

Ao meu olhar, surge a perfeição.

Obrigada por este momento de leitura, através do seu olhar. Uma pintura de Gracinda Candeias, a pintura "sem título" e agora "nocturno". Porque, sim.

F.Apolinário

Renata de Aragão Lopes disse...

"desenho um sol
dentro da noite
que em meus dedos
anoitece,
cansada de ser noite."

Que magnífico trecho!
Ainda mais,
ao som de um piano...

Um abraço,
doce de lira

luís filipe pereira disse...

Caríssimos leitores, amigos, intertextuantes: muito obrigado por continuarem dando vida, reverberando com vossas generosas palavras a noite em que o compasso vai moldando este "Nocturno".Para a Magda Arsénio meu afecto distendido a todos, aos escritores/escritoras, poetas, aos que já têm vindo a dar razão de ser a este blogue, aos recém-chegados a esta topologia que, de maneira humílima, a todos ofereço.

obrigado. Filipe

Anónimo disse...

Alguns leitores antes de mim já disseram o quanto os tocou este seu poema. Também a mim me emocionou, o poema fez-se poesia nesta noite em que, por feliz acidente, o descobri. O poema é sublime. O equilíbrio mágico e súbtil como a linha invisível entre a agulha e o carvão do compasso. Lindo!

Joana F. Amaral

Anónimo disse...

"troco a hesitação pelo hábito do sol/que virá", versos absolutamente antológicos. A luz própria do Sol impõe-se, o sol virá, mesmo que "em vão" tenha sido o retraimento da ausência, afinal a Presença (que Presença) do poema) trinfa.
Parabéns.

A. Borges

Lídia Borges disse...

Um poema, uma tela...

Intertextualidade perfeita!

Anónimo disse...

É no "diâmetro livre da luz" que localizaria esta poesia maior: uma fascinante e sempre surpreendente qualidade poética e heurística que se alia à plasticidade sonora (significantes à solta, desembaraçando-nos dos significados/conceitos convencionados). Disseram-no antes (a intertextualidade não coarcta afinidades...), digo-o: o poema é lindo, assim o manifestou a artista G. Candeias (a pintura seleccionada é belíssima), abre realidades dentro da realidade imaginal do quadro de que o poema parte, para ser, esplendorosamente, Poema.
Carlos Leme

Eleonora Marino Duarte disse...

poeta,

eu estou profundamente agradecida pela oportunidade de conhecer o espaço que construiu aqui.

assim que estiver com o tempo necessário para ler com dedicação os seus escritos, deixarei minhas impressões, se me permitir, de sua obra.

em uma primeira leitura, me encantou pelas imagens e profundo cuidado com a palavra.


emocionou-me muito vê-lo com meu estimado poeta António Ramos Rosa, a foto é histórica!

voltarei para me por em dia com o que tenha perdido de suas criações.


grande abraço!

Anónimo disse...

Um poema soberbo; o som dos Nocturnos de Chopin saindo dos dedos de Maria J. Pires; a pintura interessantíssima de Gracinda Candeias: apetece anoitecer assim, ficar assim encantada com a força, a perfeição, a sinfonia dos seus versos. Este blog tem um tesouro dentro...

M. Branco

poetaeusou . . . disse...

*
poemas desenhados
no compasso
das palavras
,
belo poema,
,
saudações,
,
*

Anónimo disse...

Magnífica construção poética, quero - não será em vão - vertiginosamente mergulhar nos textos, nos poemas do seu blog. Parabéns!

M. L. Duarte

Anónimo disse...

Certamente senti as palavras como ninguem... talvez me esteja a sentir esvaido de um sol inacabado... a minha tristeza da monotonia, "cansada de ser noite", também paira por aqui. E como ja te falei, tambem procurei procurar ou trocar "a hesitação pelo habito do sol que virá", como "só quis queimar essa ausência
nas imediações do lume,
no diâmetro livre da luz.
sei que foi em vão."
Tu disseste tudo, nada a acrescentar, do meu intrinseco mundo interno.
Alexandre Soares

Anónimo disse...

Pode o poeta desenhar o sol dentro da noite e o sol desenhado/dito devèm máquina de luz.Pode o poeta trocar a hesitação pelo hábito do sol que virá/ a apagar ausências. Pode o poeta maior que é Luís Filipe deslumbrar-nos, sempre. Agora a palavra, a cor, os sons. Parabéns Luís Filipe. Obrigada
Salica

luís filipe pereira disse...

Caros intertextuantes, leitores, amigos, artistas, escritores, "bloguers", renovadamente e com igual emoção vos agradeço pelos ecos, elogios, análises, chamar~lhes-ia hermenêuticas afectuosas,pelos quais me deram a ver o modo como, generosamente, foram sensíveis a este meu poema - e volto a agradecer a gentileza e a disponibilidade da Pintora Gracinda Candeias relativamente à pintura que foi para mim uma espécie de "matriz das ideias" postas em palavras no poema Nocturno.
À Professora Doutora Isabel Clemente, sempre me faltarão pa lavras para agradecer-lhe o ânimo que me faz continuar a manter aberto este Lugar, para agradecer-lhe o TUDO.
grato, filipe

Unknown disse...

Existem atalhos que nos conduzem a caminhos largos, onde se pode observar em toda a sua beleza um por de sol feito com palavras.
Cheguei aqui e sentei-me demoradamente a ver o sol rolar até se apagar na linha de um horizonte distante.
Como me sinto tão pequena perante a sua força e saber.
Mesmo assim, atrevo-me a pedir-lhe que me visite e opine se algum dia poderei caminhar assim como o senhor?

Anónimo disse...

Extraordinário poema!
os múltiplos comentários a ele, justíssimos, abonam da polissemia que o "Nocturno" encerra, fabulosa criação poética a despertar plurívocas reacções de leitura.
meus maiores parabéns.

Carla S. Pinto

bonecadetrapos disse...

importa que aconteça. que o verbo contorne a luz nocturna. que jubile poesia.
___lugar de luz. aqui

e jamais em vão.

Saudações com estima
*__bonecadetraspos__*

Anónimo disse...

"nas imediações do lume" fica-se sempre ao ler a sua extraordinária poesia.


M. C. Guarda

Daniel Hiver disse...

Que belo panorama noturno repleto de palavras que se encontram. Palavras que saem para jantar e tomar vinho e amanhecem juntas... para ver o sol raiar.

Foi um enorme prazer ler.

Unknown disse...

Venho agradecer o seu comentário e, em simultâneo sentir na fímbria da suas palavras, pedaços de sensibilidade rendilhados.
Voltarei muitas mais vezes para seguir o trilho das letras esculpidas.

luís filipe pereira disse...

de novo, com intacta emoção, venho agradecer-vos os ecos generosos a este poema "Nocturno"; ecos que lhe acrescentam vida e sentidos.
grato pelo DIA - Logos.
filipe

myra disse...

belo, belissssssssimo!

Anónimo disse...

Sublime.

Castro Caldas

Anaquariana disse...

Queimar ausências?
Ilusão convertida em cinzas...


Por detrás do que vai acontecendo, redescobrem-se magias sem nenhum susto.

Poema maravilhoso.

Anónimo disse...

Meu querido Luis Filipe
Meu Mestre
Meu Amigo,


Como já tive ocasião de lhe dizer os seus poemas não são para se lerem, são para se irem lendo.
Tal um bom vinho velho
acompanhado de um queijo curado
e, no fim um licor raro, com um doce conventual, escutando a chuva caindo, a lenha ardendo na lareira e
um amigo daqueles com quem já não falamos porque já dissemos tudo mas cuja companhia não dispensamos.
E, então, à luz bruxuleante da vela, ouvi-lo dizer:

só ele apagará a ausência,
a dor que ela espanca em pleno vento.

sei que a flâmula da noite
está agora emoldurada
de uma angústia diferente:
reverbera rente ao sol
concebido a compasso
um vento mais emudecido.

só quis queimar essa ausência
nas imediações do lume,
no diâmetro livre da luz.
sei que foi em vão.



Não Luis Filipe, os seus poemas mesmo no diametro livre da luz não são em vão. Nunca serão em vão porque escreve sol.

Com muita admiração e particular estima.
Sani

luís filipe pereira disse...

Querida Amiga sani, estimada escritora Maria Saturnino, nunca me chegam as palavras para lhe agradecer tamanha generosidade dos seus comentários, tamanha afectividade e ternura que põe nas leituras que fazem ao que escrevo,

grato, muito
filipe