quinta-feira, 15 de maio de 2008

Do Lido e Do Visto: Poema "De Bombordo a Estibordo"de João Rui de Sousa (in Quarteto para as próximas chuvas, D. Quixote, 2008)& Vieira da Silva

" E navegavam
- tal como em tabuleiro de xadrez já muito gasto". e por vezes o tabuleiro, depois do marfim misturado, dura além do assombroso anoitecer das mãos concentradas em manusear o claro-escuro das peças da conjugação do mundo. lentas as mãos avançam "pela eterna constância das diagonais". num langor de sombra as mãos protegem na ávida solidão o taciturno rei. e levam a rainha a desplumar a esmo os espelhos invertidos nos olhos de silêncio do outro jogador. a rainha mais veloz do que o trote vesperal dos cavalos.os dedos gastos empurram os esgotados corpos dos peões. corpos cravejados pelo veneno da insobrevivência. despedem-se sem um silvo e rolam rútilos sobre as margens lôbregas da mesa. reerguem-se as torres. "torres rectilíneas, vigilantes, /abrindo em suas trompas o seu espaço". os esgarçados dedos nelas pousam o plinto do apelo dos peões esmagados. as mãos ascendem no tabuleiro ardente. efémero como um compadecido trapézio de treva no ondeio das peças cada vez mais desconjuntadas. crescentemente o mundo é o mastro quebrado no baixio dos braços. nenhum fulgor sobrevive. ressuma o rastro de escória entre a vitória e a derrota. ambas estrelas mortas "de um tempo fragmentário, fustigante". sobre a mesa o tabuleiro vazio como um vulto bastardo sobrepõe-se à linha do mundo. troa a teia. as mãos arrastam o seu séquito de nada até aos bolsos e afundam-se na sombra àspera do sono. o mundo sobre a mesa recompõe as peças como golpes reclusos. a eles retornarão os jogadores que hão-de recomeçar. que hão-de revolver o lodo dos destroços com as mãos pacientes em demanda dos prelúdios de portos. os jogadores hão-de coroar o passatempo até que se convertam, "de bombordo a estibordo", aos alpinos ceptros alçados por pulsos de pedra.
luís filipe pereira

6 comentários:

Anónimo disse...

desta dialéctica literatura/pintura nasce mais um extraordinário texto repleto de outras dualidades da vida, vida/morte, claro/escuro, branco/preto, vitória/derrota………

Anónimo disse...

Continuo a admirar os seus textos, este agora inspirado no tabuleiro poético desse poeta de alma grande a quem Ramos Rosa dedicou o seu Grito Claro. Parabéns, de novo, Gisela Ramos Rosa

Anónimo disse...

Parabéns e obrigada. Este blog é um
diamante. este texto, sobre um poema do belo livro de João Rui de Sousa, é absolutamente inspirado, pleno, de profunda dimensão estética, de invulgar e inovador talento literário.Este blog é já uma janela que ilumina o carvão do meu lápis.Parabéns.
A. L. Amaral

Anónimo disse...

Um texto excelente de um grande escritor...um passo em frente na acinzentada crítica literária proliferante e, como chumbo, dominante... Parabéns.
M.Gil

luís filipe pereira disse...

voltar-se-á sempre a este tabeleiro como a um jogo de ler, porque neste texto excepcional há sempre uma jogada que se esconde por dentro do lance planeado. como uma teia de Vieira da Silva ou um xadrez de sentidos a ler e a tentar até ao infinito.
P. R. Mendes

Anónimo disse...

Xadrez! Eis o jogo triangular: o quadro, o poema e o texto. Às múltiplas diagonais, misturam-se as personagens no quadro, envolvendo-as na dimensão infinita. Concentradas, navegam pelas imagens ou pelas palavras do "claro-escuro das peças da conjugação do mundo" de um tempo fragmentário, no poema e no texto.
Apesar do cansaço, os jogos do tabuleiro e do mundo, sucedem-se: entre a vitória e a derrota. Entre o balouço, de " bombordo a estibordo.

Gostei de ler!
DiteApolinario