terça-feira, 27 de maio de 2008

VOAR (Série de 2001) com Helena Almeida/ Fragmento


voar parede adentro. perfurar o deserto com asas de areia. tão leve é a luz do voo que o estuque se dissipa. voar: eis um roçar intérmino sobre as paredes interiores. sobe a sombra a dedilhar os vestígios do vento e a cinza segue o caminho sedento de carne aérea. voas.
vens ao meu encontro se esvoaço sob a língua que diz o teu voo?
as tuas mãos já passaram através da parede enquanto se desmorona a gravidade. sem lei e sem bússula já anseiam os teus braços pelo ar. espalha-se a cinza em espasmos de cal e o ar extingue-se no ar no vendaval do teu corpo. voas.
como posso eu acompahar-te jazendo aqui com o chão continuando o pó das palavras?
os teus ombros olham os oceanos separados da escuridão como barcos bramindo contra a obscuridade.ouço-te as asas sob os pregos do soalho parecendo surdir dos meus ouvidos. voas.
virás soltar-me da cadeira em que escrevo se sobre ela deixaste uma interrogação continuada?
a tua cintura é já cristal flutuando entre os cristais das constelações que imitam as aves.voas.
trazes-me asas para o voo?
sobre a cadeira que deixaste ocupas o lugar destas palavras.
é uma forma fugitiva de estar no teu voo?
então empurro-te as pernas parede adentro. empurro-te os pés. estou voltado para a parede.é para ti que o mundo dos mundos está voltado. voas. sentado sobre a cadeira com a parede defronte pousa a minha mão na página como se pousasse sobre uma pedra. mas tu estás nos espaldares do mundo. o teu coração é o coração do mundo. diante da parede sei-me atrás do horizonte. sei-me no poente dos passos. sobre a cadeira como cratera de chumbo. mas voas. no interior do teu corpo exila-se o teu corpo.
voas. voa.
não quero reter-te nas palavras.
voas. voa.
luís filipe pereira

10 comentários:

Anónimo disse...

"Multiplica-se o ar em indomáveis prodígios(...)
e é toda a luz já como uma deusa visível
que nos trespassa o corpo com as pupilas da brisa"
António Ramos Rosa (em A rosa Esquerda p. 20)

Voando de novo com as suas palavras, obrigada, Gisela Ramos Rosa

Anónimo disse...

A pintura habitada de Helena Almeida, a escrita habitada do Filipe: que maravilhoso voo!

MóniKa disse...

Obrigada pela beleza deste voo sustentado numa combinação harmoniosa de palavras.
M.

Anónimo disse...

Voar. Nessa tentativa de voo, pelo preto no branco, pretende-se ultrapassar a parede ou muro, custe o que custar. Sem limites, alcançar o mundo invisível. Um desejo comum: Experimentar o que está por detrás e/ou para além do espaço físico e das palavras.
"sentado sobre a cadeira com a parede defronte pousa a minha mão na página como se pousasse sobre uma pedra": uma boa mentira!
" mas tu estás nos espaldares do mundo": uma boa verdade!

Um texto intenso. Gostei!
DiteApolinario

Anónimo disse...

lindo e lindo e lindo. A Helena de Almeida adoraria ler este texto que de forma tão perfeita traduz o anseio da artista na série Voar.
Parabéns.
P. Mendes

Anónimo disse...

Lindo!Fabuloso!o modo como o corpo vai voando ao longo do texto, o ritmo fotográfico. Um texto excepcional. Que merece outros voos...
Elsa M.

Anónimo disse...

vo ar

Anónimo disse...

vo...................ar

Anónimo disse...

É bon voar nos seus textos...








Ricarado Esteves

Anónimo disse...

consegui voar. consegui voar contigo. voas comigo. voo-te.