Declinam em gotas os teus passos?
Tu conhecias as casas habitadas pelo som das chuvas. pelo ruído das lágrimas onde o choro de quem se ergue torna mais subtil o som das águas. tu erguias-te e as agulhas do teu sangue limpo cosiam as agulhas dos pinheiros. querias atingir o mais longínquo.
Vejo-te no espelho deste vidro. vejo-te subir o estuário das ruas e da noite: és barco de água parada na brusca aceleração do espaço em que estagnam as esculturas.
Tu descobrias nas paredes das casas um fio de água como um fio de tempo e por mais passos luminosos que escorressem numa perseguição de anzol tu sentias como a vida se entorna veloz e inteira sobre uma folha de aço. tu vias a fosforescência das células em tantas células sobrepostas. as reproduções de ti próprio modalizadas por rectângulos de nitrato de prata.
Se te ergueres acaso grita a mudez do teu retrato?
Tu aprendias com as sombras. com os seus estilhaços. não tapavas a cabeça para recompores a sombra conhecida da ácida solidão dos corredores percorrendo-te até ao fim do mundo. até ao fim das chuvas manchando de aragem os pinheiros. só o vento te esticava as pálpebras e os braços nessa vigília das chuvas. no entanto caminhavas.
Para que chuvas de ir rumam os teus passos?
vejo-te no meu pensamento quando desvio os olhos do vidro. nele esgueiras-te e desandas e nada perguntas do que de mim se extingue na superfície do espelho. no meu pensamento há um pinheiro pesando-me de verdes desabrigos e chamo ir a esta janela virada para ti enquanto os meus olhos tracejam o modo de delimitar esta chuva. este rastilho de água a continuar a negra sede
do homo erectus?
luís filipe pereira
14 comentários:
Apetece-me dizer:
Tu és água.
Chamas por mim.
Deixei de estar só, na encruzilhada do tempo.
Saudações criativas
M.
lindo.lindo. lindo. lindo. lindo.
Obrigado L. F. Pereira pelo prazer de seguir com suas palavras de vidro, defronte ao vidro, pelas Chuvas de IR. Amanhã ao acordar lerei de novo o seu texto e sei que me será mais fácil levantar-me.
Erguer-me-ei sobra a chuva e imaginar-me-ei o Tu que caminha no seu texto. Talvez me veja além do vidro. lindo. lindo. lindo.
Ana M.
Ditosos passos,
examinados no atravessar de cada fracção oblíqua de ser
[chuva de refracção]
lupas de exegese que no metal retinem
antes de ecoarem na mais líquida fibra
de ti
do Mundo
da chuva que ainda és tu
Um texto puro e sublime.
Que as tuas palavras continuem a cair sobre as nossas frontes como a mais benfazeja chuva.
Um abraço do teu eterno aprendiz,
V.Banza
Felizmente há textos que nos tocam assim. Textos assim que nos incitam a sentir e a reflectir. Textos de exímia construção e plurais assombros. Há textos assim que aprumam a literatura e exploram nela e em nós uma insubordinada "negra sede". Textos assim agradecem-se, porque são sismos que nos transfiguram: espaços de questionação. Vou consigo Filipe pelas Chuvas de Ir (lindo título). sempre!
Caro Victor Banza, Mónika, intertextuantes generosos deste humílimo blogue: toca-me o vosso afecto, ternura e generosidade. Convosco eu sou o mais privilegiado aprendiz e tanto me ensinam e tanto vos agradeço. "Aprendiz Secreto" (título de António Ramos rosa): o construtor que mergulha nos recessos do vazio e da sombra para, tentativa a tentativa, jamais imune ao malogro, abrir com palavras um espaço poético no qual possa a vida alçar-se mesmo se um subterrâneo poço a atrai para o fundo sem fundo, mesmo se só o ir difere contra as mortes certas. Luís filipe pereira
Que texto belo!belíssimo. ´
aguas que levantam até à fundura dos desabrigos. Assim se caminha. a literatura:a vida: a morte. Segui-lo-ei, Filipe, pelos meandros essenciais do seu contínuo
Livre à Venir (sei que o "nosso" Blanchot é muito bem vindo a este Lugar - onde se abrem Mundos - de Intertextualidades. Filipe, troco os Parabéns (merecidos) pelo Obrigado (justo).
A- L. Paiva
"Para que chuvas de ir rumam os teus passos?
vejo-te no meu pensamento quando desvio os olhos do vidro."
... não sei. talvez nunca ouse pretender saber as chuvas que afunilam meus passos. nem tão pouco o fulgor dos vidros que me mordem madrugadas. vim somente. no cetim das chuvas declinadas nesta noite. dali ao lado, onde o li. e no silêncio das paredes descalças parto. voltarei nas sobras das palavras.
como a chuva que finalmente derrama, célula menos célula, percorre-se, em veloz velocidade, o caminho da enfermidade até à solidão. só o mar, tal a força das suas vagas levantam gotas e renascem os passos que fazem permanecer erectus, por ora, este efémero desejo de eternidade. de que vale a singular soberania? não bastaria o silêncio, minuto mais minuto, para sentir a pele respirar, em mais lenta velocidade, até ao último fôlego do chamo ir?
obrigado por me avisares da chuva com este excelente texto tão rés aos passos de Giacometti.
como a chuva que finalmente derrama, célula menos célula, percorre-se, em veloz velocidade, o caminho da enfermidade até à solidão. só o mar, tal a força das suas vagas levantam gotas e renascem os passos que fazem permanecer erectus, por ora, este efémero desejo de eternidade. de que vale a singular soberania? não bastaria o silêncio, minuto mais minuto, para sentir a pele respirar, em mais lenta velocidade, até ao último fôlego do chamo ir?
obrigado por me avisares da chuva com este excelente texto tão rés aos passos de Giacometti.
rui
"negra sede" em que bebo revigorado
nestas Chuvas de IR. Texto extraordinário. Que voltem a aprumar-se as palavras e os sentidos de tão rara, perturbante, beleza.
Matilde
Belíssimo!!!!
Joana
Magnífico texto. Prosa poética e reflexiva, inovadora e exímia do ponto de vista literário com o rebordo tão característico no Luís Filipe Pereira (seu tesouro, sua formação curricular e work in progress) da interartisticidade. Como Artaud entra no Estúdio de Giacommetti e põe o texto e o leitor a caminhar sobre a chuva. Chuvas de Ir (lindíssimo título), também corro para o seu livro iminente....
como quem chama, como um anúncio de vespertino, como um cantar de abril ou qualquer coisa como essa.
gosto da forma como volteias a prosa, circulas nas avessas das palavras até nos chamares, vamos como leitores sem dono. crescemos com os teus textos, desces à nossa ingenuidade e depois fecundas alguma tristeza viva, agora morta para sempre.
tu sabes do que falo quando digo que morrer faz falta, tenho muito prazer na morte e só alguns me conseguem matar, este teu texto está bom e mata-me.
um beijo
deste
mar.
Caminha-se por passos largos, seguindo o som das chuvas, daquelas que refrescam e hidratam. Procuram-se casas habitadas, paredes, janelas limpas e desinfectadas a "nitrato de prata". As feridas ou as sombras ácidas dos "fios de tempo", não moram por lá.
Nessa caminhada e de sangue limpo, procura-se o erguer dos corpos, dos rostos e dos pensamentos. Com as "chuvas de ir", levanta-se a voz, a continuar a “sede do homo erectus”. Deseja-se descobrir e construír, mais ainda. Assim, "Chamo ir", ir mais à frente.
Como sempre, gosto desta casa habitada.
Obrigada,Luís Filipe Pereira.
Fernanda Apolinário
(DiteApolinário)
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