terça-feira, 22 de abril de 2008

sótãos de salutar solidão (fragmento que dedico a Gisela Ramos Rosa)

"E todos os espaços das nossas solidões passadas, os espaços em que sofremos a solidão, desfrutamos a solidão, desejamos a solidão, comprometemos a solidão, são indeléveis em nós. E é precisamente o ser que não deseja apagá-los. Sabe por instinto que esses espaços da sua solidão são constitutivos. Mesmo quando eles estão para sempre riscados do presente, doravante estranhos a todas as promessas do futuro, mesmo quando não se tem mais o sótão, mesmo quando se perdeu a mansarda, ficará para sempre o facto de que se amou um sótão, de que se viveu numa mansarda. A eles voltamos nos sonhos nocturnos. Esses redutos têm valor de concha." Bachelard, Poética so Espaço..........................................................................

sótãos. estranhos e mágicos recessos de epifanias. alpendres invertidos soerguendo-se na surda música da respiração. um álbum esquecido torna-se vivo. o pó que esvoaça das gavetas subterrâneas late em júbililo quando o percorrem os dedos aracnídeos e nele riscam revoadas de arabescos. linhas. mapas do corpo. espumas de conchas. sótão. ermo coração da casa arfando nos gestos que escutam um texto desconhecido. sótãos para experimentar o infinito num mínimo acto de melancolia. sótãos de aventura quando a casa e o mundo adormecem como um barco à deriva numa consentida espera das vagas ciciando o eu do eu do eu na lucidez de um espaço umbilical que amanhece nos orifícios da noite. da pele. da tela em branco. sótãos-cais. sotãos-centros em que realmente nasço na luz da comunicação para além da comunicação humana. comunico com as traves. com os ninhos sonhados. com as conchas folheadas no sortilégio de um poema a escrever-se sobre os degraus dos meus joelhos. sótãos nos confins do enigma onde ecoam as notas da infância de um piano ausente-presente. tocando em surdina notas de serenidade colhidas nas linhas infinitesimais de um lugar mínimo tornando-se mais lugar do que todos os lugares. sótãos-mundos. sótãos que são exímios sítios da lonjura de mim. atraídos por um traço maior. um verso mais iluminado do que o frio lóbulo de uma lâmpada. sótãos-olhos rolando para a memória do desconhecido. para os olhos das conchas entrabertas. para os arquipélagos da intimidade que são o lugar imóvel do vaivém da tristeza. mas onde a seiva do ser alastrando sótão adentro permanece em nós aprumando-nos as asas. as imagens não decepadas que são promessas de regresso ao eu do eu do eu. que retorna ao soalho flutuante como casco nu embalando a partitura das muitas vozes da nossa voz saboreando o medo no abrigo silente dos sótãos-fronteiras. dos sótãos-passagens. conchas labiando dentro de conchas. corais que proliferam no único lugar de solidão onde é impossível estarmos sós. sótãos-respiração. sótãos que nos respiram quando fechamos os olhos e prometemos regressar ao nosso lugar unitivo........................................luís filipe pereira

2 comentários:

Anónimo disse...

Dos Sótãos-cais, memórias de viagens ao eu do eu, desse trânsito venoso e silencioso essencial....Obrigada Filipe!

Anónimo disse...

Dessa viagem ao eu do eu por cais e passagens... sótãos-espaços silêncios venosos essenciais. Obrigada Filipe. Gisela Ramos Rosa